quarta-feira, agosto 09, 2006

A dificuldade de ler (37)

Franz, vendo que Weissmuller não terminava com os seus incompreensíveis disparates acerca do Sudoku, deu meia volta e encaminhou-se para a saída que dava acesso ao elevador. O rosto tinha-se transformado em pedra amassada por contradições de uma queda abismal sobre a escarpa aguçada de uma longa encosta. Weissmuller não tinha acabado o seu discurso apologético de quebra-cabeças numéricos.
- Franz! Onde vai? Eu estava aqui à sua espera.
Franz voltou a estacar. Um catavento precisa de vento como de pão para a boca. Humm. Não é uma boa frase. Não vem a propósito. Há que ter em conta o contexto sócio-político. Por vezes a elisão pode chegar a extremos de ilegibilidade e esse nunca é o propósito. Mas há várias teorias que defendem não ser necessário expressar tudo para que a comunicação passe. Alguém (A, por exemplo) dirá: eu diria da mesma forma. É uma verdade, certas incorrecções da linguagem ganham estatuto e tornam-se emissoras de informação correcta. E não estou a pensar neste caso concreto. O que também não é uma boa frase.
- Franz, não vou ter a indelicadeza de lhe perguntar o que veio aqui fazer, mas devo informá-lo que conheço as suas intenções, respeito-as e estou disposto a ajudá-lo desde que escolha outro caminho.
- Continuo a não saber do que fala, Weissmuller.
- Falo de jogos, Franz. Talvez não saiba do meu interesse por jogos. É natural. O médico conhece os seus pacientes mas os pacientes não sabem nada sobre o médico. Há uma extrema assimetria. É assim com todas as relações de poder: “quanto menos souberes sobre mim mais poder tenho eu sobre ti”. Não estou a citar ninguém, ocorreu-me agora, mas já deve ter sido dito por alguém (A, talvez). Já tudo foi dito, caro Franz. Já se fez tudo o que havia para fazer. A diversidade está esgotada. Cada um de nós apenas pode repetir um gesto já milhares de vezes utilizado. A nossa época já não tem hipóteses de originalidade. Limitamo-nos a reciclar acções em cenários reciclados com motivos reciclados e intenções recicladas. Até a barbárie, Franz. Até a barbárie é reciclada.
- Que quer de mim, Weissmuller?
- Protegê-lo, Franz, protegê-lo. O juramento de Hipócrates obriga-me, e neste caso faço-o de boa vontade.
- Proteger-me de quê? Que é que me pode fazer mal?
- Você, Franz. O Franz é o tipo de pessoa que não faz mal a uma mosca. Quando sucede necessitar de agredir alguém para repor alguma ordem no mundo, escolhe-se como vítima. Você é Cristo, Franz, Cristo.
(continua)

Torcato Matos

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