quinta-feira, agosto 17, 2006

Bens essenciais

Países pequenos fazem guerras curtas, rápidas, com poucas baixas militares e algumas baixas civis, prosaicos danos colaterais. Morrem também jornalistas de países estranhos à guerra, que recebem à palavra ou ao fotograma e trocam imagens de sangue por um futuro melhor para os seus. Não é fácil dizer-te, irmão, que o teu corpo é a matéria de que preciso para melhorar o meu nível de vida. Eu fotografo-te e fotografo a tua miséria para que me salves da minha. Não estás por isso em guerra só com os teus inimigos. Também eu estou em guerra contigo. Preciso da tua morte para que os meus filhos possam ir à escola descansados. Preciso da tua morte para que o meu carro ande e as minhas magras posses de trabalhador assalariado dêem para ter alguns prazeres na vida. E custa-me este trabalho. Dói-me. É um trabalho duro. Repara, és tu ou eu. Não lutamos corpo a corpo porque há entre mim e ti toda uma estrutura de poder muito complexa.

Por outro lado - há sempre outro lado outra vez - ao levar a tua imagem ensanguentada para o meu jornal, ao pegar em ti e tornar-te ícone de um mistério que se filtra pela minha voz - e se não for este o mistério outro será - dou uma mão adulta e limpa a uma luta que é tua e me serve como serviria qualquer outra luta que tivesse um rosto torturado para poder mostrar. Sou, neste caso, teu cúmplice; parte activa de um recontro com a verdade; mão amiga que pega na tua imagem bandeira para obter a atenção volátil de consumidores vorazes e importantes.

É muito raro um camponês matar um general. Do mesmo modo que é muito raro um general matar um camponês. É raríssimo um camponês matar um clérigo. Mais raro ainda um clérigo matar um camponês. O que é normal e aceitável é que um camponês mate outro camponês. É uma questão de proximidade mental. Inimigos da mesma espécie, carnes do mesmo calibre, pés com o mesmo apego a caminhar.

Cumprimos assim, neste arfar solene de um planeta que morre, um concubinato de interesses: tu dás o sangue e eu dou a tinta; distribuímos pela incandescência dos sentimentos, avisados sinais de bruma e de cansaço; largamos, numa associação de interesses, napalm ideológico e caridade comercial; bebemos, no mesmo deserto, infusões amargas de ignorância e ganância.

Agradeço-te, amigo, a tua morte à frente da minha objectiva; esse gesto de extrema coragem e abnegação. Morres pela tua pátria, pelo teu povo, pela tua religião, pelo teu chefe, pela tua incomensurável honra, pelo vazio absoluto da tua esperança. E morres também por mim, para que nada falte em minha casa...

Ikivuku

1 comentário:

vague disse...

:)

apesar de haver os tais abutres sequiosos do sangue dos outros ha que ver q um fotografo conscencioso empresta a tinta ao sangue que se derramou
e preferivel pensar assim
(nao tenho pontuaçao em condiçoes pelo que nao a coloco)
;)