segunda-feira, agosto 14, 2006

A dificuldade de ler (40)

Capítulo III (versão zero ponto seis um)

Tinha sido convocada por telemóvel para uma manifestação de apoio ao uso indiscriminado de piercings: “Manifa a favor dos pircings no Russio k u guverno ker puribir na kuarta ás seis”. Verónica não ligava nada a estas mensagens que chegavam nem sabia bem de onde. Carregava no botão e ficava a olhar para a mensagem a desaparecer para sempre num caixote de lixo animado. Mas desta vez tinha dado atenção e decidido participar. Não a interessava nada a questão dos piercings. Tinha horror a agulhas e os furos nas orelhas tinham sido antes da sua consciência. O que a alertara, fora a questão de o governo proibir. Bastava ouvir falar em proibições e governo para a pele engalinhar e o sangue lhe subir à cabeça. Já fizera terapia para saber porquê e tentar controlar os impulsos, mas as verdadeiras razões tinham ficado escondidas no inconsciente ou noutro lugar qualquer a que nem ela nem a terapeuta tinham acesso. Depois desinteressara-se. Era assim; havia de saber viver com os próprios constrangimentos. Também tinha pé chato e isso não a impedia de caminhar.
Além disso Verónica andava irritada. Tinha feito o casting para entrar numa narrativa em Londres e quando chegara a sua vez, os baixos índices de audiência e o desinteresse generalizado pelas boas e más narrativas que vai transformando o mundo numa coisa indescritível, tinham transferido a acção para Lisboa e arredores, e dado um rude golpe na ansiada oportunidade de internacionalização. Há muito que se provara, nesta santa terrinha, que um português para ter sucesso tem que sair daqui e ser apreciado no estrangeiro para depois poder voltar e suscitar a correspondente inveja. Tinha insistido em entrar logo no primeiro capítulo, já que se considerava exímia na tragicomédia e queria marcar o ritmo da narrativa com uma entrada de leão, no caso uma entrada de leoa, mas o editor tivera um peso excessivo e o narrador parecia não saber o que queria. Um verdadeiro caos, sem ordem nem governo. Talvez por isso tivesse decidido permanecer no projecto. Também porque já não era possível suportar as despesas do dia a dia apenas com o subsídio de desemprego. Um biscato, ainda que numa narrativa aérea e pouco credível, era melhor do que nada, enquanto não substituíam mais um ou dois ministros por outros ainda piores.
Uma manifestação contra o governo caracteriza-se sempre por ter poucas pessoas mas boas. Verónica chegou ao Rossio e ficou hesitante sobre qual dos pequenos grupos que por lá andavam seria a manifestação dos piercings. O calor exagerado para a época mas relativamente ameno se descontarmos o aquecimento global, fazia com que mesmo os mais extravagantes procurassem a sombra. Verónica que tinha com o Sol uma relação muito próxima de tu cá tu lá, achava deprimente que as pessoas se protegessem do que considerava o verdadeiro e único Deus, que trouxera a vida e a levaria quando muito bem entendesse. Tinha estudado física nuclear há muitos anos, quando fora obrigada a tirar um curso para ser alguém na vida, já que não tinha estofo para se dedicar a procurar um homem que lhe desse, como a mãe dizia, sustento e dignidade. Ela estava-se nas tintas para a dignidade mas falhava na questão do sustento porque havia sempre coisas e mais coisas que eram necessárias e a maioria das pessoas não levavam a bem ser roubadas por pobres, embora não se importassem nada de ser roubadas por ricos, o que até parecia para alguns ser uma honra.
(continua)

Torcato Matos

1 comentário:

Rosario Andrade disse...

...aguardo a continuacao!
Bjico