domingo, agosto 27, 2006

A dificuldade de ler (46)

- Compreenda, Verónica, que para mim você poderia ser a mulher com quem troquei palavras estes últimos meses. É uma hipótese a que eu me agarro agora na expectativa de este amor não se dissipar no vazio e me matar.
- Estás a esquecer-te que o meu número de telefone tem um digito diferente. Isso é uma prova de que não sou eu. O meu endereço de correio electrónico também é, certamente, diferente. São poucos dados mas são os suficientes para me ilibar dessa paixão.
- Eu sei. Eu sei. Mas não está a conseguir chegar ao meu ponto de vista. Tenho aqui um amor a que falta um corpo. Percebe?
- Não!
- O seu ponto de vista é o da Cinderela. Está a pensar que tenho um número de telefone e tenho que partir em busca do pé onde esse número encaixa...
- Não me pareces bem para príncipe... embora nos dias de hoje...
- Mas o que eu tenho é um texto, um longo texto, escrito em longas noites, trocado por fantasias, ficção, pura ficção que levei a sério - ou realidade que transformei em ficção - como um asceta que tem um visão no lugar onde não está nada. Eu nunca vi a pessoa que amo. E quando a quis ver evaporaram-se as palavras. Um anti-milagre, está a ver? Fixei o meu interesse num objecto sem corpo; apaixonei-me por uma mulher sem rosto; amo uma narrativa interrompida.
- Quem te garante que é uma mulher?
- As palavras. Eram palavras fêmeas. Palavras vestidas de seda, que roçavam no rosto como carícias de pele delicada.
- Poderia ser um homem disfarçado e por isso não se quis mostrar...
- Não, não pode ser. Não ponho sequer essa hipótese. Neste momento só quero pôr a hipótese de ser você, Verónica.
- Estás louco!
- Foi a Verónica que respondeu à minha mensagem.
- Claro, foi para mim que mandaste a mensagem. E eu vim apenas porque me estava a apetecer uma manifestação contra os chulos do governo. Apenas isso. Nunca me passou pela cabeça encontrar um delirante apaixonado pelo vazio.
- Está a ser cruel. O meu sentimento é verdadeiro. Estou realmente perdido. Não sei que fazer a seguir.
- Mandas a mensagem para o número certo, riscas-me do mapa, esqueces estes minutos e pode ser que tenhas mais sorte da próxima. E não te enganes em mais nenhum algarismo.
(continua)

Torcato Matos

2 comentários:

Maria Arvore disse...

Continuo a ler. :)

Unknown disse...

Obrigado, Maria Árvore. :)