terça-feira, agosto 15, 2006

Encanto

Vi-te agora, montanha, ainda mais bonita.
O sol e a lua brilham sobre ti como olhos tornados ainda maiores.
A intensidade absoluta da tua luz despoleta o desejo.
Como uma cor, um corpo, um rosto que enche o sonho.

E ao mesmo tempo a distância.
A rigidez que as palavras tomaram por um não sei quê que as tornou resistentes, hesitantes.
Palavras que foram minadas por outras palavras e ficaram no seu lugar a usurpar significados.

Há muito tempo que sei não te merecer, horizonte.
Não é nada de mal comigo nem nada de mal contigo.
É uma questão de classe; uma questão de casta; uma questão de poder.

O meu plano está resvés a base entediante do nível do mar.
O teu, rasga as nuvens e iça-se até lugares que eu não sei.
O meu movimento é lento, hesitante, inseguro e teórico.
O teu, estremece de emoção e tempestade, sempre à espreita de outro lugar.
O meu sonho é vago, retirado a ferros de uma infância piedosa.
O teu, derruba a realidade e alcança com fulgor o impossível.
O meu olhar é destrutivo, analítico e complacente.
O teu, quer beber dos bens divinos a sua generosa parte.

Não há maneira de dar aos afectos as suas formas perfeitas.
Subo pelos caminhos mais rotineiros para evitar o que penso abismos.
Levo o meu mito comigo para que se cumpra a vontade inconsciente.
E sobre os ombros pesa sempre uma fórmula maldita de mágoa.
Como se em cada caminho que bifurca se pudesse perder uma vida inteira.

Desde o longe dos anos e do longe das distâncias tornei-me súbdito de ti.
Condenação dos deuses ou benefício dos céus que diferença faz?!
Fiquei assim consolado na tua margem, pendente das tuas alvoradas.

E é assim que ficarei agora, venham as tormentas que vierem.
Olhar fixo no único horizonte que me encanta.

Sísifo

2 comentários:

Rosario Andrade disse...

Lindo! Obrigada por dares a conhecer estas pérolas!
Bjico!

Bastet disse...

Quantas vezes a montanha não olhará o seu sopé e agradecer-lhe-á em silêncio o seu suporte, ambos acreditando solitários que não se merecem?