O meu modo de vida é andar à superfície. Há uma pele nos objectos que delimita, com clareza quase ilimitada, o seu lado exterior do seu lado interior. Claro que só o digo assim porque estou a olhar para os objectos na minha perspectiva superficial e portanto também a clareza quase ilimitada a que me refiro é uma clareza quase ilimitada mas superficial. Também é à superfície das coisas, dos objectos portanto, que sou capaz de encontrar, sem grande esforço - como é próprio de andar à superfície - um lado exterior, que é, por definição e prazer, o meu lado, e um lado interior que, por razões próprias do meu modo de vida, só me interessa de maneira muito superficial.
Aqui à superfície sou mais do que eu. Como se estivesse ao leme, levando a nau a bom porto.
Os corpos interagem pela respectiva superfície. Tocam-se, mas não se chegam a tocar verdadeiramente. A parte de um corpo que toca a parte de outro corpo é apenas a instável e probabilística e quântica nuvem electrónica das suas moléculas que toca apenas a quântica e probabilística e instável nuvem electrónica das moléculas do outro corpo. Nesse toque há sempre, numa superfície cuja mínima espessura desafia a imaginação, uma troca de electrões que se se desse o caso de terem uma individualidade ou um nome próprio, dariam a um investigador, ainda que superficial, a hipótese de saber que objecto tocou em que objecto, que corpo roçou em que corpo, que coisa chocou com que coisa.
É à superfície que ocorrem os contactos. É à superfície que ocorrem as trocas. É à superfície que se traçam os caminhos e se percorrem as estradas e se escrevem os desejos.
Se a terra fosse uma maçã, a espessura habitável seria a fina casca. É aí que eu moro, nesse lugar apertado mas suficientemente vasto para as minhas exigências.
O meu sonho é ir ao fundo das coisas. Existe textura, forma e peso debaixo da pele. O único mal de andar à superfície é a incómoda e permanente sensação de haver uma massa que nos suporta, um plano que não é o nosso plano, um fundo a que não acedemos, uma espessura que é mais espessa que a razão, um interior que existe sempre, mesmo quando tentamos desvendá-lo. O que não está à superfície pressupõe o absurdo da crença. Deixo isso para o sonho. Adormeço na fase líquida e mergulho na lava, à espera de perceber, à espera de saber o que é a verdade. Durante o sonho pego nas moléculas dos objectos e separo-as umas das outras à procura da razão porque estão ali, como se se sentissem bem a fazer um corpo maior que elas, como que quisessem cooperar.
Aqui, no fundo, sou mais do que eu. Pedaço atómico de um formigueiro que se estende pelos continentes. Os corpos não sabem do interior uns dos outros. Permanecem na ocultação de não saberem de si próprios, daquilo que move a quilha para estibordo. Sonho então que sei o que está aí dentro, no interior que parece conter a razão das coisas e fazê-las inesperadamente mudar de rumo, mesmo que a superfície calma, a planície fleumática, o vagar manso das águas pareça mostrar a paz do instante imediato.
À superfície sonho o interior dos objectos, as hipóteses para as estruturas, o movimento telúrico dos magmas. Na lâmina rasa dos instintos leio os sinais do desconhecido. Não creio que o interior nos queira, de livre vontade, mostrar-se como é, revelar-se, tornar-se exterior. O que não é suportável é a pressão absurda do inconsciente à procura de caminho no acaso dos batimentos cardíacos. Se quisermos, a verdade é isso: o abalo sísmico que diz o que é o fundo das coisas. Todo o fundo é um sonho da mesma forma que a superfície é real. Desvendar é transformar fundos em superfícies, interiores em exteriores, medos em banalidades.
1 comentário:
Comentário no blog do "Prólogo", ele mesmo.
Beijos.
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