quinta-feira, agosto 31, 2006

Pausa higiénica

Por motivo de inventário encerramos para balanço. Por motivo de balanço encerramos para descanso do pessoal. Por motivo de descanso do pessoal encerramos para desratização. Por motivo de desratização encerramos para greve geral. Por motivo de greve geral encerramos os serviços mínimos. Por motivo de serviços mínimos encerramos para inventar. Voltamos, se o Blogger quiser, a nove de setembro. Amen.

Postonze

Estes foram os dias de que no futuro me vou lembrar como felizes. Pouca coisa, movimentos apenas suaves, esboços de coisas maiores, alguma guerrilha de interesses, alguma atenção ao esforço de crescer, muito gesto desusado para querer impressionar e a voz alta a incomodar os vizinhos. Lá fora o sol caía com estrondo incendiando os matos e a indolência, e eu ouvia músicas que preenchem agora imaginações de doze anos.

Estes foram dias que daqui a alguns anos ecoarão no meu ocaso como aqueles que valeram a pena. E por nada, claro. Como é próprio das coisas boas não se apresentarem vestidas de cores garridas nem precisarem de publicidade institucional. Dias passados, portanto, a rever em câmara lenta doze anos de história que entretanto passaram a interpor-se entre hoje e o inicio das coisas. Rapa-se pela primeira vez o bigode ralo e escutam-se do corpo os primeiros sinais de exigência. Já há alguns estragos no coração e ciúmes por sms. Aos doze anos já se percebe mal o que o outro diz e não se quer perder nenhum dos movimento no tabuleiro. Os químicos sobem ardilosamente a determinar a vontade superior da natureza.

Soa bem dizer que amanhã recordarei estes dias como aqueles em que fui feliz. Como se tivesse agora uma boa razão para chegar a amanhã e assuntos estritamente pessoais para lembrar e dar volume à importância dos afectos. Ele tem agora doze anos e passa por mim nas férias enquanto caminha para o seu próprio e exclusivo rumo. E eu vejo, enquanto sigo o meu, e comovo-me, claro, porque vai ali um bocado de mim. Porque ressoam na imagem e nos actos memórias de mim que já tinha esquecido para sempre, arrumadas de vez com os calções e a boina.

Estes dias que agora já estão na reserva quente de se tornarem os meus dias felizes, puseram-me na frente o espelho de outros anos que também poderiam ter sido os mais felizes e não foram por nenhuma razão. Apenas porque não estava disponível para ter doze anos, porque não sabia como era e é difícil, perante um corpo que se quer erguer para passar a ser, de uma maneira abrupta e rebelde e entusiasmada e arrogante e determinada, resistir à tentação de exercer a autoridade de aligeirar a alegria e formatar o ego novo em réplicas amorfas do que se julga ser a evidência.

Fiquei bem desta vez ao vê-lo sair de novo para a rotina suave do dia-a-dia. Ficou comigo esta impressão estranha de os dias virem a ter a sua memória feliz. O olhar agora é o mesmo de há quinze dias e os braços prendem o afecto com a mesma força. Mas ficou por aqui a pairar pela casa oca um som de música para doze anos que ainda não sabe senão da superfície das coisas e brinca com isso como se fosse verdade. E não há como dizer que vai ser sempre assim, que os laços que prendem a certeza são frágeis e voam livres logo que podem.

Estes foram os dias de que no futuro me vou lembrar como felizes.

Aibieme

quarta-feira, agosto 30, 2006

Conselhos sensatos

Ao ler no límpido e sereno blogue "Por outro lado" o poema de Pablo Neruda, "Morre lentamente", ao que percebi muito conhecido, identifiquei não sei se definitivamente, o que me incomoda em determinada "poesia" que, como o "IF" de Rudyard Kipling, pretende ser um guia de comportamentos, cheio de boas intenções e espírito construtivo.
E o momento exacto em que se fez luz foi no verso "fugir dos conselhos sensatos". Que é este poema senão um conjunto de conselhos sensatos? Que faz Pablo Neruda neste poema senão indicar-nos aquilo que ele considera o caminho certo?
Ora o que eu estou à espera na poesia, e só assim consigo chamar-lhe poesia, é que não me dê conselhos, porque se o fizer vou considerá-los conselhos sensatos e fugir deles a sete pés.
O que eu estou à espera num poema é que não use nem a minha lógica, nem lógica nenhuma, para me dizer alguma coisa que eu tenha suficiente dificuldade em entender por ser nova para a minha interpretação corriqueira dos dias e ter a animação mental ou emocional adequada a corromper-me sem cheirar a chá de tília.
O que eu estou à espera num poema é que esteja lá outra pessoa que não tem a veleidade de querer pensar em mim e muito menos por mim.
Estou à espera que o poema seja um sítio selvagem onde talvez eu possa perder-me ou não. Um sítio em que até posso ter medo de entrar, não por ser pouco recomendável, mas porque me desafia nas minhas seguranças e nos meus instintos. E fujo logo que me acenam com um lenço branco.
Mas não estou à espera, e já vi que me aborreço, que o poeta tenha a intenção de me formar, ainda que use um discurso potencialmente subversivo e anime o texto derrubando com serenidade os lugares comuns.
Não estou à espera que o poeta saiba mais do que eu, embora eu saiba que ele sabe mais do que eu se for poeta.
Um poema assim, a ser poema, é uma oração, uma lista de projectos, o outline da mudança industrial. Ou um guia para escuteiros. Ou um decálogo para substituir outros decálogos tornando a vida uma revisão periódica de regras e de conselhos sensatos.
É um texto bonito e simpático, mais não seja porque casca na televisão. Mas não é um poema. Não será por isto que Pablo Neruda é poeta.

Ikivuku

A dificuldade de ler (49- C4/P1)

O sétimo congresso internacional de Literatura Inclusa (7CILI) reuniu este ano em Pexiligais, Sintra, um conjunto de especialistas que ultrapassou todas as expectativas tanto dos organizadores, como dos próprios especialistas, como dos restaurantes da zona pouco habituados a enchentes e a paladares apurados. Cátia Meleças, cozinheira estagiária da Casa de Pasto "O lameiro - especialidades de marisco e frango assado" apresentava umas enormes olheiras quando questionada sobre os hábitos gastronómicos do Dr. Isidro Medário, insigne autoridade nacional em Literatura Inclusa (LI). As olheiras não foram provocadas pelas questões mas pelo excesso de trabalho.
"Tinham-me dito que o estágio ia ser calminho mas passei a última semana a assar frangos." "O doutor Isidro é muito simpático, sempre bem disposto e mais de beber do que de comer." "Não, não tocou no frango, ficou-se pelas entradas e pelas sobremesas. Ainda lhe disse que eram frangos garantidos, com alimentação biológica e isentos de corantes e conservantes, mas ele disse que se estava a reservar para os cofee breaks do congresso e por isso não podia abusar." "É uma pessoa delicada, muito atenciosa e com muito bom gosto. Até disse que eu era muito bonita para estar metida numa cozinha." "Disse que um dia destes vem com mais tempo e talvez traga a família para apreciar estes ares do campo." "Espero ainda cá estar quando ele vier para lhe fazer um belo almoço. Ou jantar que nós também servimos jantares durante o verão." "Não, este ano tirando o congresso foi muito pequeno o movimento. É da crise, claro. As pessoas preferem ir passar as férias ao estrangeiro porque cá ficam muito caras." "Eu é que agradeço, se precisar de mais alguma informação é só dizer."
A inusitada multidão que se reuniu em Pexiligais obrigou a que as comunicações principais tivessem sido apresentadas ao ar livre por não haver lugar, nem cadeiras, nem ar, que chegassem, no interior da tenda relativamente gigante que tinha sido propositadamente montada para o efeito. A enchente teve ainda o efeito de pela primeira vez reunir num mesmo congresso as várias correntes da LI, que se opõem violentamente entre si, e só aceitaram estar presentes devido à proverbial neutralidade e inocuidade do nosso país e à garantia da presença permanente de uma batalhão da polícia de intervenção.
O tema central do 7CILI foi a Qualidade da Literatura Inclusa (QLI). A comunicação mais aguardada veio pela mão de Stalislav Oreky, poeta Estónio que nos anos noventa iniciou uma verdadeira revolução na LI, ao fazer acompanhar cada novo livro de um certificado de qualidade e de um manual de instruções.
(continua)

Torcato Matos

Infecção

Tenho medo de novos afectos. Protejo-me agora de ver mais além que o minuto imediato. Não preciso já de relógio porque o tempo não é importante para quem não espera senão uma coisa. Submeto qualquer súbita lembrança ao escrutínio de uma razão obsessiva para que não passe nenhum pó que emperre ainda mais a engrenagem. Interessa-me um caminho limpo e liso, regular e regulável, avesso às surpresas e às intrusões do acaso. Não olho para o que se passa à minha volta mais do que os minutos necessários para saber que me é indiferente. Persigo com as forças que me restam um horizonte em que as nuvens sejam apenas as necessárias para que o jardim se renove sem sede.

Disseste um dia, toldado pela demência de quem não sabe mais do que sente, que o meu rosto habitaria para sempre os teus sonhos. E eu que não acreditei porque tinha a habilidade de perceber que não sabemos dizer mais do que aquilo que achamos que devemos dizer, acreditei na mesma que isso queria dizer que sabias de mim e querias guardar-me junto com as tuas verdades. Já nessa altura lutava em mim a confusão de querer estar ao mesmo tempo em dois lados, no céu e no inferno, na alegria e na dor, no verão e no inverno, contigo e sem ti.

Não sei como é que te posso dizer agora isto quando já não estás e sei que não voltarás a estar porque, e isso nem sei como dizê-lo, me ocorre que nunca estiveste verdadeiramente mesmo sabendo que isso não tem significado nenhum. Cada hora tem a sua própria e individual razão, o seu próprio e individual ressentimento. Sigo os rituais, portanto. Acompanho o passar dos dias como se fossem diferentes uns dos outros e houvesse alguma coisa a desejar para além de que não doesse muito. É um desejo simples, como vês, esperar por nada sabendo que nada vem a seguir.

Eu poderia ter tido gestos mais eloquentes. Poderia ter representado melhor o meu papel, sem medo nem contradições, nem medo das contradições. Seria até motivador para mim ter alguém a quem enganar, uma espécie de objectivo de vida que me reformulasse o desejo para além da mente encalhada em monstruosas indecisões. Houve mesmo uma altura em que te pedi um gesto que pudesse parecer começar outra história.

Hoje é fácil ver que tudo o que aconteceu era premonitório. Confesso que me rio da chamada ironia do destino porque sempre me pareceu mais sarcástico que irónico. Mas este sempre é duvidoso: sei lá eu já o que pensava quando pensava outra coisa?! A memória vai-me acompanhando os novos ritmos e dentro dos possíveis poupando a minha consciência do peso das leviandades de outrora. Esquecimento santo mais do que cruel. Perder como forma de ganhar. Luto como forma de amor.

Beatriz Teresa
(post anterior)

terça-feira, agosto 29, 2006

A dificuldade de ler (48)

A noite encontrou Verónica e Guilherme caminhando silenciosos à beira Tejo, cada um procurando resolver de maneira tão prática quanto possível o burocrático enigma da existência. Não há qualquer possibilidade de sabermos o que pensavam, e não é aceitável que sobre isso se especule perante seres que são, eles próprios, incapazes de saberem o que querem ou quererem o que sabem. Poderíamos sem remorsos deixá-los ir até que dessem a mão ou se beijassem ou, inadvertidamente ou de propósito, um deles atirasse o outro ao rio e lavasse daí as mãos. Poderíamos também deixá-los por ora e voltar a encontrá-los mais tarde num capítulo em que a acção deles tivesse necessidade. Há sempre muitas hipóteses para uma história. Mas como é de lei que este texto se constitua documento sobre as coisas que efectivamente se passaram, passamos para o dia seguinte que, como já vimos, traz juntamente com a aurora, a frescura das notícias e a boa-vontade das consciências.
Às dez da manhã dava entrada na esquadra da polícia de Belém a seguinte participação:
"Eu abaixo assinado Arsénio Dias Guilherme Nêutico, filho de Laurinda Dias e Hélio Guilherme Nêutico, nascido a 25 de Abril de 1974, na freguesia de Cabanelas, concelho de Vimioso, distrito de Castelo Branco, venho, por este meio, participar às autoridades competentes, ter sido vítima de um assalto de consequências ainda difíceis de avaliar para a minha integridade física, química, moral e emocional. Os factos a que se refere a minha queixa resultaram num conjunto de actos falhados que me colocaram em cerca de sete meses na situação de dependência emocional de palavras de proveniência não identificada. Apresento por isso a minha queixa contra incertos de quem apenas tenho um número de telemóvel e um endereço de correio electrónico. Suponho tratar-se de uma mulher com elevado nível cultural e intelectual, com escrita elegante e assertiva, convicta das suas opiniões, conhecedora da mente humana, atenta, perspicaz, informada e de uma inteligência extremamente cativante. Perigosa, portanto.
Passo a enumerar os artigos de cuja falta já posso dar conhecimento às excelentíssimas autoridades: 1 - o sono; 2 - o amor-próprio; 3 - a consciência; 4 - o desejo; 5 - a realidade; 6 - a certeza; 7 - o medo; 8 - o apetite; 9 - o emprego; 10 - a ideologia; 11 - o gosto; 12 - a vergonha; 13 - a identidade; 14 - o prazer; 15 - o sonho; 16 - a paciência; 17 - a integridade; 18 - o pudor; 19 - a alegria; 20 - a fé; 21 - a paz; 22 - os amigos. Poderão existir outros de cuja falta ainda não me apercebi devido à extrema confusão em que tudo ficou e por não haver um inventário actualizado de bens que possa ser confrontado com a actual situação.
Rogo o urgente empenho na resolução deste caso. (assinatura legível)".
(continua)

Torcato Matos

Plutão

Sabes, eu queria não saber o que sei, ter a certeza que o que sei não é certo, discordar de mim como se fosse uma frase mal dita.
Queria saber outras coisas que me dessem da verdade outra perspectiva e saber ao mesmo tempo que o que soubesse podia ser tão falso como outra coisa qualquer.
Era fundamental para o meu equilíbrio que aquilo que sei, mesmo quando digo que não sei e me ponho com audácias de pensamento a querer parecer que não acredito que sei alguma coisa, fosse esquecido, obliterado da minha memória, e, mais do que da memória, do automatismo dos meus movimentos e dos meus sentidos.
É uma questão de vida ou de morte.
Quando eu te digo que sei o que quer que seja, e mesmo que não saiba ou queira que penses que não sei, apesar de saber ou me parecer que sei, fico, inevitavelmente, retido no lado mais obscuro da minha dimensão desconhecida e oculto das certezas.
Eu digo-te que sei e espero que saibas ler naquilo que digo uma insegurança no meu saber que eu sei que não tenho mas não tenho a certeza se é uma insegurança real ou apenas uma maneira de te fazer saber que não deves confiar no meu conhecimento.
E ao dizer que não sei, como às vezes acontece, mesmo que saiba ou tenha a vaga impressão de saber, sei que o digo de uma maneira que espera que penses que sei, para que, apesar da minha emissão de ignorância, reste na tua mente a confiança de desconfiares de eu não saber.
Eu sei que quando te digo que sei, sabendo que não sei, corro o risco de ter de me defrontar com a demonstração do meu desconhecimento.
E sei que haverá um dia em que perceberás que há coisas que te disse que sei e afinal não sei e outras que reconheci não saber quando, sem querer, posso acabar por revelar saber.
E sei também que esse momento pode ser uma espécie de libertação de um nó de sabedoria que é demasiado apertado para transportar e partilhar em dias e dias de reconhecimento.
É como se esperasse que tu, lendo do meu saber aquilo que não o é, chegasses àquilo que de facto sei, contornando o meu saber pelo lado de fora e denunciando, ainda que intimamente, a fraude de o meu saber ser outro que não aquele que te digo ser.
E é por saber que queria afinal não saber daquilo que sei e, sabendo outras coisas, conhecendo outras vias paralelas ao meu real percurso, arriscar outro saber e outras certezas que pudesse dizer-te directamente sem necessidade de dizer que sei o não sei e que não sei o que sei.
Eu queria não saber o que sei, estar esquecido da história que se instalou na minha verdade e passar a saber outros gestos e outras poses, outros passados e outros destinos, outros que fossem afinal aqueles que soubessem aquilo que tu também sabes.

Prólogo

segunda-feira, agosto 28, 2006

Pérolas (XIII)

Confesso-me um fanático da Rosarinho. Nem que seja para me livrar das drogas...

A dificuldade de ler (47)

- Que mal tinha para si, Verónica, ser você a mulher que eu amo?
- Que mal tinha?!
- Sim, repare, chego ao pé de si já completamente apaixonado, não precisa de fazer nada para conseguir o meu afecto, está tudo pronto, as partes difíceis da história, a necessidade de sedução, o encantamento, a dúvida sobre o interesse do outro, a pureza dos sentimentos, a absoluta gratuitidade da devoção, o envolvimento hormonal.
- Não estou à procura de namorado nem de paixão. Neste momento quero lutar contra o governo.
- Eu lutaria do seu lado, seria o mais feroz dos adversários do governo, por amor a si.
- Estás-me a propor um namorado pronto-a-vestir?!
- Estou a mostrar-lhe que tenho uma disponibilidade afectiva à procura de objecto. Sem a Verónica sou nada.
- Calma aí! Há uma hora nem sabias que eu existia, pá!
- Desculpe, digo a Verónica como diria outra mulher que estivesse aqui comigo.
- Ao dizeres isso não sentes que estás a colocar-me num plano muito pouco relevante?
- Estou a ser verdadeiro. Estou a dizer o que sinto. Tenho uma paixão deslocalizada e procuro um centro, uma imagem para a minha devoção.
- Não me estou a imaginar num amor pré-fabricado. Não é nada de pessoal contra ti. É o arrepio de entrar numa história que não é minha. Colher frutos que não semeei. Não! É demasiado aberrante. Suponho que não te será difícil encontrar alguém disponível, mas aconselho-te a mudares de método e de discurso.
- É angustiante esta situação. A Verónica não está a conseguir perceber a generosidade da minha oferta.
- Nem tu estás a perceber o que isso tem de humilhante. Tens um problema, por muito aberrante que seja é um problema, e queres alguém que to resolva. É apenas isso.
- Podemos ver este nosso encontro por uma perspectiva de acaso. Calhou-lhe a si receber a minha mensagem.
- Acho que foi azar...
- Do meu ponto de vista, que queria partilhar consigo, o acaso trouxe-a até mim, como se tivéssemos uma missão a cumprir, definida por instâncias superiores.
- Não me faças rir, Guilherme! As instâncias superiores não são o meu forte. Geralmente fazem-me subir a mostarda ao nariz.
(continua)

Torcato Matos

domingo, agosto 27, 2006

A dificuldade de ler (46)

- Compreenda, Verónica, que para mim você poderia ser a mulher com quem troquei palavras estes últimos meses. É uma hipótese a que eu me agarro agora na expectativa de este amor não se dissipar no vazio e me matar.
- Estás a esquecer-te que o meu número de telefone tem um digito diferente. Isso é uma prova de que não sou eu. O meu endereço de correio electrónico também é, certamente, diferente. São poucos dados mas são os suficientes para me ilibar dessa paixão.
- Eu sei. Eu sei. Mas não está a conseguir chegar ao meu ponto de vista. Tenho aqui um amor a que falta um corpo. Percebe?
- Não!
- O seu ponto de vista é o da Cinderela. Está a pensar que tenho um número de telefone e tenho que partir em busca do pé onde esse número encaixa...
- Não me pareces bem para príncipe... embora nos dias de hoje...
- Mas o que eu tenho é um texto, um longo texto, escrito em longas noites, trocado por fantasias, ficção, pura ficção que levei a sério - ou realidade que transformei em ficção - como um asceta que tem um visão no lugar onde não está nada. Eu nunca vi a pessoa que amo. E quando a quis ver evaporaram-se as palavras. Um anti-milagre, está a ver? Fixei o meu interesse num objecto sem corpo; apaixonei-me por uma mulher sem rosto; amo uma narrativa interrompida.
- Quem te garante que é uma mulher?
- As palavras. Eram palavras fêmeas. Palavras vestidas de seda, que roçavam no rosto como carícias de pele delicada.
- Poderia ser um homem disfarçado e por isso não se quis mostrar...
- Não, não pode ser. Não ponho sequer essa hipótese. Neste momento só quero pôr a hipótese de ser você, Verónica.
- Estás louco!
- Foi a Verónica que respondeu à minha mensagem.
- Claro, foi para mim que mandaste a mensagem. E eu vim apenas porque me estava a apetecer uma manifestação contra os chulos do governo. Apenas isso. Nunca me passou pela cabeça encontrar um delirante apaixonado pelo vazio.
- Está a ser cruel. O meu sentimento é verdadeiro. Estou realmente perdido. Não sei que fazer a seguir.
- Mandas a mensagem para o número certo, riscas-me do mapa, esqueces estes minutos e pode ser que tenhas mais sorte da próxima. E não te enganes em mais nenhum algarismo.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, agosto 25, 2006

A dificuldade de ler (45)

- Nem tudo o que parece é, Verónica. Nada do que parece é. Não sei. Não tenho a certeza. A Verónica pode saber mais do que eu. Embora ao mesmo tempo não me pareça. Não faça essa cara, eu não estou louco. Pelo menos não estou muito louco.
- Esta é a minha cara. Estou a ouvir-te. Faz um pouco de luz na minha mente. Diz-me em que lugar estou neste momento. E onde é que deveria estar.
- Não se impaciente. Vou tentar - não sei se conseguirei - proceder como se a Verónica não soubesse de nada. Porque isso até me parece verosímil. Em termos lógicos é a única coisa que é possível. Mas incomodam-me as coincidências. Incomoda-me não ter previsto esta situação. Parece que a realidade tem sempre um trunfo na manga.
- Tem de certeza. A realidade é sempre outra coisa.
- Acredita que eu nunca a tinha visto até hoje?
- Acredito. Faz sentido. Eu também nunca te tinha visto. E felizmente estou a ver-te aqui. em público, no meio de uma multidão, porque se estivesse sozinha contigo num outro lugar estaria assustada e preocupada.
- Não faço mal a uma mosca...
- Também acredito. Mas o teu discurso é demasiado misterioso para o meu gosto. Não é misterioso, é embrulhado. Que eu até gosto de mistérios...
- A minha namorada é um texto.
- ...

- Quero dizer que só a conheço por palavras que trocámos em conversas electrónicas. Namoramos através da internet e dos telemóveis. É na base do texto que passamos os nosso sentimentos. Nunca a vi. Não sei como é, como se veste, se é alta ou baixa, gorda ou magra. Não sei a que cheira, que cor tem, que idade tem ou aparenta. Não sei como se chama. Não lhe conheço o tom de voz. Falei com ela ao telefone, a meu pedido, mas do lado dela só chegou o som de uma respiração pesada e lenta. Sei de coisas que sente e que lê e que vê e que ouve e que toca e que teme e que deseja. E não sei nada. Ela sabe mais de mim porque eu fui dizendo como era. E ouviu-me. Sabe pelo menos como me vejo. Eu não sei como ela se vê. Não sei vê-la, nem sonhá-la, e porque a sonho os meus sonhos são fantasmas. Depois de algum tempo a insistir com ela para nos vermos, disse-lhe, há duas semanas, que não valia a pena continuarmos se fosse assim. E desde então não tive nem mais uma palavra dela. Nem uma. Não me responde ao correio electrónico, nem às mensagens por telemóvel, nem aparece na internet. Perdi-lhe o rasto. Tenho uma namorada, que já não tenho, com que sonho e de cujas palavras gosto, mas que não tem forma, nem existência, para além das palavras que lhe li. E agora que nem as palavras me dá, esta paixão deixou de ter objecto, está perdida no vazio, agora sem imagem nem palavras. Volto às palavras velhas que arquivei e vou quase sabendo de cor, e sinto que amo um espaço vazio, um lugar em que apenas a ausência está presente.
(continua)

Torcato Matos

quarta-feira, agosto 23, 2006

A dificuldade de ler (44)

- Depois fiquei preocupado com a minha mensagem que não era bem a minha mensagem porque foi enviada com o propósito de confundir e tendo sido entregue em lugar impróprio tinha subitamente ganhado uma dimensão que me transcendia. Não é que se tivesse seguido o traçado inicialmente preconizado eu tivesse alguma espécie de plano lógico que conduzisse a alguma solução prática. Não. Eu sabia que uma vez recebida a mensagem pela destinatária eu teria que seguir de alguma maneira o acaso e arrancar de mim uma improvisação que não poderia em caso algum preparar. Mas a repentina modificação de trajectória fez-me pensar, e desculpe esta ingenuidade, que o carácter casuístico tinha começado um degrau abaixo do meu esboço de plano. Soube, num instante - e estas coisas das telecomunicações são hoje mecanismos mais rápidos que o pensamento - que outra pessoa tinha recebido a minha mensagem e poderia ter com ela uma reacção que de alguma forma me removesse do caminho liso que me estava a molestar. Eu não sabia, como há-de acreditar, quem era o receptor da minha mensagem. Era uma mensagem numa garrafa que eu atirara para fora da minha ilha por acidente. Hesitei. Hesitei bastante antes de, há pouco, enviar a segunda mensagem. Havia uma probabilidade muito pequena de a pessoa que recebera a garrafa ter lido a mensagem e estar no local que eu queria. Não era impossível mas muito improvável. Eu não queria dar esta imagem de ingenuidade. Ou mais, esta imagem de superstição. Mas tenho que dizer que estava à espera que a minha namorada, ou ex-namorada, ainda não sei, por uma manobra milagrosa do destino, aparecesse no momento em que a Verónica apareceu.
- Apareci eu em vez da tua namorada. Não é preciso muito para perceber isso. Mas como é que ela poderia aparecer aqui se eu é que recebi a mensagem? E voltaste a enviar a segunda mensagem também para mim...
- Eu sei. Eu sei desse grau de impossibilidade. A Verónica não está a seguir o meu raciocínio. Eu sabia que havia outra pessoa. Mas não sabia quem era essa pessoa. Não sabia se essa pessoa tinha ligado alguma importância à minha mensagem. Não sabia nada, Verónica! E esse é o estado mais angustiante que se pode viver. Havia sempre a hipótese de ser alguém com um fio diferente para a narrativa.
- E o que é que eu sabia? Que é que eu faço aqui?
- O seu ponto de vista é diferente. É por isso que apesar de não saber nada de si tenho que começar por convence-la da bondade dos meus propósitos.
- Já percebi a bondade dos teus propósitos. Só não percebo porque persistes no erro. Se te enganaste uma vez, porque queres prolongar o engano no espaço-tempo? Eu não sou a tua namorada. Ponto final. Tomamos a bica e adeus.
- Verónica, eu não tenho a certeza que não seja a minha namorada... ou ex-namorada, ainda não sei...
(continua)

Torcato Matos

domingo, agosto 20, 2006

A dificuldade de ler (43)

- É verdade, não tenho piercings. Nunca tive. Não gosto.
- Eu também só vinha à manifestação por ser contra o governo. Cada um manda no seu corpo e pode pôr os piercings que quiser e onde quiser.

- A minha mensagem foi para o seu telefone por engano.
- Por engano?
- Sim, enganei-me num algarismo. O seu telefone tem um algarismo de diferença do telefone da minha namorada. Ou ex-namorada. Ainda não sei bem.
- Então eu entro nesta história por causa de um algarismo trocado?! É isso que me leva para dentro da tua história?
- Os números são importantes. Eu acho que os números são importantes. Mas eu posso dizer o mesmo: por um algarismo trocado entrei na sua história.
- Falta-te dizer, para o teu caso ser perfeito, que tudo é relativo...
- Não iria tão longe. Sou uma pessoa simples, Verónica, apesar de ter um nome complicado.
- O teu nome não é complicado... mas tu não pareces nada simples... e eu estou aqui a tomar um café quando o meu objectivo era participar de uma manifestação contra as abjectas políticas do governo.
- ...
- Mas se te enganaste no número porque é que estamos aqui? O que é este prolongamento de uma troca de algarismos? Confesso que não percebo. O lapso aconteceu e deveria ter terminado, não deveríamos estar aqui. Que continuação é esta?
- Tenho de lhe confessar, Verónica, que também não estou em condições de sustentar teoricamente o facto de estarmos aqui a confessar. O lapso foi meu. Ontem enviei a mensagem para a minha namorada, ou ex-namorada, ainda não sei, e percebi, logo no momento a seguir que tinha enviado a mensagem para outro número. Tinha sido difícil tomar a decisão de enviar a mensagem para a minha namorada, ou ex-namorada, ainda não sei, porque estava a empurrar-me para uma ficção que não é minha e não tenho jeito para ficções, e por isso tinha recorrido a um suplemento de coragem para enviar uma mensagem de um número que não era o meu. Depois de perceber que me tinha enganado já não tive mais coragem para repetir o gesto. O meu corpo traíra-me fazendo-me escrever um digito errado. Suponho que o corpo faz o que quer. Reconheço que eu poderia ser o tipo de pessoa que perante a adversidade faz tudo para que prevaleça a sua vontade. Poderia. Não sei como se faz mas reconheço que poderia ser dessa maneira e talvez tivesse vantagens. Mas neste caso não fui capaz de voltar a enviar a mensagem para o número que de facto me interessava. Digamos que o meu plano fora interrompido por um erro de operação e era necessário voltar a repensar toda a questão.
(continua)

Torcato Matos

sábado, agosto 19, 2006

Postdez

Entre 85 e 99 acreditei que só eu é que perdia se as coisas corressem mal. Era assim que parecia. Acostumara-me desde cedo a aceitar que a minha interferência no andar da carruagem era um factor de descarrilamento e por isso não fui capaz de pensar outra coisa senão que o que quer que sofresse seria consequência dos meus actos. Ainda hoje não sei se fingias ou não, que para ti não tinha importância. No jogo que fazíamos, os trunfos pareciam todos teus e em caso algum a emoção venceria do teu lado, deixando para mim as sobras e a ideia de perda irreparável. Em algumas conversas, em que se colocavam hipóteses hipotéticas, em que brincávamos com as possibilidades como quem brinca com a sorte, em que dizíamos, para parecermos adultos e seguros, que o amor é eterno enquanto dura, em que, em suma, tentávamos ser cínicos sem saber muito bem como é que se fazia, a angústia que aflorava na sombra das palavras sentia-a eu em silêncio para não dar parte de fraco.

Pode ter sido esse medo de perder que empurrou a decisão até ao limite de já não ser decisão. E foi embaraçoso perceber, quando me vim embora, que afinal não havia sobras nenhumas e todo o sentimento tinha sofrido uma tal erosão que já não era senão a película fina da aparência. Digamos que joguei cobardemente pelo seguro, deixando sempre que um medo se sobrepusesse a outro até já não saber que medo primordial era esse de que fugia.

Agora que os anos passaram e foram nivelando o acidentado do terreno, penso essas hesitações de novo como se fossem hoje. E vem outra vez à ideia a irremediável assimetria dos afectos. Não bastava eu gostar de ti. Nenhuma relação se pode esgotar na unidireccionalidade. Era preciso que o teu afecto fosse tão grande como o meu; que te doesse tanto a ti como a mim falar de roturas, ainda que hipotéticas; que te angustiasse como a mim dizer frases inteligentes e cínicas acerca da brevidade da eternidade; que fosses incapaz de me ofender mesmo que te sentisses ofendida por outros; que me pusesses num lugar suficientemente elevado que se equilibrasse com o lugar onde eu te punha.

Descobri que, tal como gostei de ti, posso gostar de outra pessoa. Não outra pessoa qualquer, nem por ser outra pessoa qualquer, mas porque é fácil gostar de uma pessoa quando se gosta dessa pessoa. Porque o afecto vem, toma conta de nós e leva-nos para o outro como um reflexo e uma dádiva. O que é difícil, o que descobri que é mesmo difícil e emperra a linearidade, é a simetria, o haver no outro lado um sentimento idêntico, uma busca semelhante.

Pode ser uma dificuldade minha, pode ser uma consequência e não uma causa, pode ser um mero efeito de não saber como ressoam no outro as palavras que em nós dominam. Entre 85 e 99 acreditei que só eu é que perdia se as coisas corressem mal. Agora já não acredito, mas continuo a não gostar de perder e a gostar ainda menos que os que amo percam.

Aibieme

sexta-feira, agosto 18, 2006

Retornos

Deverá haver um termo intermédio entre existir e desistir. Ou mesmo um degrau acima e outro abaixo. Uma gradação que deixe escolher a quem escolhe - a quem quer e tem vontade - a área de serviço que não existe, nem desiste. Haverá mesmo, assim acredito, um não existir nem desistir para os que não têm vontade, nem vontade de ter vontade.

Começa-se, digo eu, por saber de um lugar e sobre o lugar de que nada se sabe inventar um nome - provisório como todos os nomes - um nome inicial para sabermos do que falamos quando falamos daquele lugar sobre o qual nada sabemos. Do lugar que desconhecemos podemos chegar a todos os outros lugares também incógnitos e com eles fazer uma geografia do desconhecido. Dizemos então que estivemos neste lugar em data incerta, muito antes de outros, primeiros no lugar e no nome e perfeitos por isso e por não sabermos.

Depois, sabido o nome, que é sempre um nome provisório, partimos em viagem. Basta saber o nome para que a seguir já seja possível partir, porque agora já sabemos o nome de um lugar de regresso e, mais ainda, sabemos de um lugar que ninguém sabe e que pode ser anunciado como tesouro particular.

Numa viagem, enquanto o nosso olhar pousa sobre lugares que já não são os mesmos do andamento anterior, dizemos aos desconhecidos que sabemos de um lugar que eles não sabem e deixamo-los com desejo, também eles, de viajar, de partir, de sair do lugar onde estão para verem os lugares onde nunca estiveram. O lugar de nome provisório será assim divulgado para que conste de outros inconscientes colectivos e solicite mistério e magia na imaginação crispada de quem segue todas as setas salivares e ignora o som cavo do interior.

Durante a viagem que fazemos à procura de lugares de que não ouvimos falar, propomos aos desconhecidos desses lugares os nossos, para os deixarmos ansiosos e desanimados. Ficamos assim na posse, não só de um lugar novo com nome provisório, como também de pessoas provisórias, divididas entre existir e desistir, ignorantes como nós, como eu, de alternativas, mas mais ignorantes do que nós, do que eu, por ainda acreditarem em lugares que nunca viram.

As viagens acabam por acabar. Mesmo que logo a seguir comecemos outras, mesmo que o fim de uma etapa seja o início de outra, há um momento em que dizemos, em que digo, esta viagem chegou ao fim. Estou cansado, acabo aqui a viagem que comecei no lugar que descobri com nome provisório. E mesmo que eu continue a caminhar enquanto falo do fim da minha viagem, é aí nesse curto espaço de uma frase que se delimita o fim e o início da frase seguinte.

Há a meio de qualquer viagem um momento de desânimo. Do lugar com nome provisório incluído avulso na carta de navegação, fica, com o tempo, a imagem nítida de ter sido uma miragem. Chora-se então pelo lugar perdido e diz-se aos desconhecidos dos novos lugares da viagem, que havia um lugar que era mais lugar do que este, em que entre existir e desistir, muito para além do possível, havia outras nuanças.

Depois, depois do meio da viagem, depois do momento de desânimo, o corpo incorpora a pouco e pouco a miragem e dá ao real o colorido novo da consciência.

Prólogo

quinta-feira, agosto 17, 2006

Bens essenciais

Países pequenos fazem guerras curtas, rápidas, com poucas baixas militares e algumas baixas civis, prosaicos danos colaterais. Morrem também jornalistas de países estranhos à guerra, que recebem à palavra ou ao fotograma e trocam imagens de sangue por um futuro melhor para os seus. Não é fácil dizer-te, irmão, que o teu corpo é a matéria de que preciso para melhorar o meu nível de vida. Eu fotografo-te e fotografo a tua miséria para que me salves da minha. Não estás por isso em guerra só com os teus inimigos. Também eu estou em guerra contigo. Preciso da tua morte para que os meus filhos possam ir à escola descansados. Preciso da tua morte para que o meu carro ande e as minhas magras posses de trabalhador assalariado dêem para ter alguns prazeres na vida. E custa-me este trabalho. Dói-me. É um trabalho duro. Repara, és tu ou eu. Não lutamos corpo a corpo porque há entre mim e ti toda uma estrutura de poder muito complexa.

Por outro lado - há sempre outro lado outra vez - ao levar a tua imagem ensanguentada para o meu jornal, ao pegar em ti e tornar-te ícone de um mistério que se filtra pela minha voz - e se não for este o mistério outro será - dou uma mão adulta e limpa a uma luta que é tua e me serve como serviria qualquer outra luta que tivesse um rosto torturado para poder mostrar. Sou, neste caso, teu cúmplice; parte activa de um recontro com a verdade; mão amiga que pega na tua imagem bandeira para obter a atenção volátil de consumidores vorazes e importantes.

É muito raro um camponês matar um general. Do mesmo modo que é muito raro um general matar um camponês. É raríssimo um camponês matar um clérigo. Mais raro ainda um clérigo matar um camponês. O que é normal e aceitável é que um camponês mate outro camponês. É uma questão de proximidade mental. Inimigos da mesma espécie, carnes do mesmo calibre, pés com o mesmo apego a caminhar.

Cumprimos assim, neste arfar solene de um planeta que morre, um concubinato de interesses: tu dás o sangue e eu dou a tinta; distribuímos pela incandescência dos sentimentos, avisados sinais de bruma e de cansaço; largamos, numa associação de interesses, napalm ideológico e caridade comercial; bebemos, no mesmo deserto, infusões amargas de ignorância e ganância.

Agradeço-te, amigo, a tua morte à frente da minha objectiva; esse gesto de extrema coragem e abnegação. Morres pela tua pátria, pelo teu povo, pela tua religião, pelo teu chefe, pela tua incomensurável honra, pelo vazio absoluto da tua esperança. E morres também por mim, para que nada falte em minha casa...

Ikivuku

quarta-feira, agosto 16, 2006

Pérolas (XII)

Ecce Homo vale bem o tempo que leva a ler!

A dificuldade de ler (42)

- É uma boa combinação. Pelo menos parece-me uma boa combinação.
- O quê? O que é uma boa combinação?
- Os nossos nomes. O meu e o seu. Guilherme e Verónica. Soa a heróis de uma ópera. O Lher combina com o Ver, o Gui com o Ni.
- És engraçado Guilherme. Onde é que estão os teus piercingsI?

- Ah! Os meus piercings. Pois. Podia dizer-lhe que não estão à vista. Talvez até fosse uma boa estratégia. Não sei bem para quê. Desculpe. Um descafeínado morno com adoçante. E para si Verónica?
- Um café duplo em chávena escaldada.
Durante alguns minutos faz-se silêncio (temos de descontar neste silêncio o ruído de cadeiras a arrastar, a máquina a moer o grão de café, o ruído subliminar do ar-condicionado e dos frigoríficos, as chávenas e os pires a serem empilhados com violência, uma criança a berrar, muitos adultos a tentarem falar mais alto uns que os outros, o trivial portanto) e em três ocasiões Verónica e Guilherme esboçam em simultâneo uma primeira sílaba que é interrompida para dar a vez ao outro. Na quarta tentativa que ia ser ganha por Guilherme chegou à mesa a empregada que colocou com estudada delicadeza o pedido trocado na frente de cada um deles.
- Desculpe, mas o café duplo é para a senhora...
- Eu sei, foi ela que pediu!

- Então porque não o pôs do meu lado em vez do descafeínado que deve também saber que foi o cavalheiro que pediu?
- Faço sempre isso. Troco sempre os pedidos dos clientes.
- Troca?
- É um método de os pôr a conversar. Dá resultado. A maioria dos clientes chega aqui num elevado estado de tensão. Entram broncos e saem brutos. Se lhes troco os pedidos, mal me afasto já estão a conversar. Mesmo que comecem por falar mal de mim e do serviço e tal, descongelam a conversa e a seguir nunca mais se calam. Pessoas complicadas, sabem. Muito complicadas. Precisam de assuntos comezinhos para desencalhar. São fenómenos físicos perfeitamente naturais que acontecem com toda a espécie de matéria. Agora tenho que ir trocar pratos para outras mesas.
- Simpática.
- Atrevida!

Também desta vez houve simultaneidade nas palavras de Guilherme e Verónica e a ordem que escolhi é perfeitamente arbitrária ou só não é arbitrária na medida em que nada do que fazemos se pode considerar nem perfeito, nem arbitrário. Achei mais convincente considerar o simpática de Guilherme anterior ao atrevida de Verónica por me parecer que Guilherme não teria a deselegante ousadia de considerar a empregada simpática depois de Verónica a ter considerado atrevida.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, agosto 15, 2006

Encanto

Vi-te agora, montanha, ainda mais bonita.
O sol e a lua brilham sobre ti como olhos tornados ainda maiores.
A intensidade absoluta da tua luz despoleta o desejo.
Como uma cor, um corpo, um rosto que enche o sonho.

E ao mesmo tempo a distância.
A rigidez que as palavras tomaram por um não sei quê que as tornou resistentes, hesitantes.
Palavras que foram minadas por outras palavras e ficaram no seu lugar a usurpar significados.

Há muito tempo que sei não te merecer, horizonte.
Não é nada de mal comigo nem nada de mal contigo.
É uma questão de classe; uma questão de casta; uma questão de poder.

O meu plano está resvés a base entediante do nível do mar.
O teu, rasga as nuvens e iça-se até lugares que eu não sei.
O meu movimento é lento, hesitante, inseguro e teórico.
O teu, estremece de emoção e tempestade, sempre à espreita de outro lugar.
O meu sonho é vago, retirado a ferros de uma infância piedosa.
O teu, derruba a realidade e alcança com fulgor o impossível.
O meu olhar é destrutivo, analítico e complacente.
O teu, quer beber dos bens divinos a sua generosa parte.

Não há maneira de dar aos afectos as suas formas perfeitas.
Subo pelos caminhos mais rotineiros para evitar o que penso abismos.
Levo o meu mito comigo para que se cumpra a vontade inconsciente.
E sobre os ombros pesa sempre uma fórmula maldita de mágoa.
Como se em cada caminho que bifurca se pudesse perder uma vida inteira.

Desde o longe dos anos e do longe das distâncias tornei-me súbdito de ti.
Condenação dos deuses ou benefício dos céus que diferença faz?!
Fiquei assim consolado na tua margem, pendente das tuas alvoradas.

E é assim que ficarei agora, venham as tormentas que vierem.
Olhar fixo no único horizonte que me encanta.

Sísifo

A dificuldade de ler (41)

Nenhum dos numerosos aglomerados que se acoitavam nas escassas sombras do Rossio, parecia a Verónica concordar com a sua expectativa de um grupo de militantes pró-piercings e, à medida que as seis da tarde se aproximavam, instalava-se na sua mente literal a dúvida sobre a veracidade da mensagem que recebera. O que a frustrava, digamos assim, não era a hipótese de ter sido enganada, mas a desilusão de não se manifestar abertamente contra o governo integrada num número suficientemente numeroso para não sentir que estava a gritar sozinha.
Cogitava em juntar-se a outro grupo qualquer que lhe parecesse adequadamente anti-governo quando tocou, no saco que trazia a tiracolo, a Cavalgada das Valquírias, indicadora de nova mensagem. "Tá pur aki alguém prá manifa dos piercings. Todus á porta da Suissa." O sorriso de Verónica abriu-se. Afinal ia haver protesto.

À porta da pastelaria com ar de quem procurava alguém, apenas estava um barbudo de óculos muito grossos e roupa demasiado pesada para o calor que estava. Vendo o ar inquiridor de Verónica perguntou-lhe se vinha para a manifestação.
- Venho para a manifestação contra o governo. Não têm nada que proibir os piercings.
- Ainda bem que a encontro.
- A mim?
- Tomamos um café?
- Então e não esperamos pelos outros?
- Não há outros. Posso saber o seu nome? Eu chamo-me Guilherme.
- Verónica, muito prazer. Mas que história é essa?
Guilherme entra na Suissa à procura de uma mesa e tem sorte de ver uma mesa a vagar, mas tem o azar de, na pressa de não perder o lugar, derrubar com a mochila, um galão a ferver para cima do colo de uma velhinha. Teve sorte porque a velhinha tinha a mala no colo e a maior parte do líquido resvalou para o chão de maneira inofensiva. Teve algum azar porque a velhinha não aceitou as desculpas sem interpor um conjunto de denominações de origem a propósito de Guilherme que não seria decoroso para nós e para os intervenientes pôr aqui preto no branco.
Sentou-se finalmente Guilherme e à sua frente Verónica ainda irrecuperável da portentosa cena de acção a que não estava habituada devido a uma inabilidade visceral para processar a lactose.
- Tiveste azar Guilherme.
- Não foi mal. Costuma ser pior. Tenho um fundo de maneio para estas situações. Já me aconselharam a fazer um seguro. Mas tenho resistido porque se as coisas correm mal com o seguro fico sem saída. Assim apenas vão acontecendo acidentes de pequena monta.
(continua)

Torcato Matos

segunda-feira, agosto 14, 2006

A dificuldade de ler (40)

Capítulo III (versão zero ponto seis um)

Tinha sido convocada por telemóvel para uma manifestação de apoio ao uso indiscriminado de piercings: “Manifa a favor dos pircings no Russio k u guverno ker puribir na kuarta ás seis”. Verónica não ligava nada a estas mensagens que chegavam nem sabia bem de onde. Carregava no botão e ficava a olhar para a mensagem a desaparecer para sempre num caixote de lixo animado. Mas desta vez tinha dado atenção e decidido participar. Não a interessava nada a questão dos piercings. Tinha horror a agulhas e os furos nas orelhas tinham sido antes da sua consciência. O que a alertara, fora a questão de o governo proibir. Bastava ouvir falar em proibições e governo para a pele engalinhar e o sangue lhe subir à cabeça. Já fizera terapia para saber porquê e tentar controlar os impulsos, mas as verdadeiras razões tinham ficado escondidas no inconsciente ou noutro lugar qualquer a que nem ela nem a terapeuta tinham acesso. Depois desinteressara-se. Era assim; havia de saber viver com os próprios constrangimentos. Também tinha pé chato e isso não a impedia de caminhar.
Além disso Verónica andava irritada. Tinha feito o casting para entrar numa narrativa em Londres e quando chegara a sua vez, os baixos índices de audiência e o desinteresse generalizado pelas boas e más narrativas que vai transformando o mundo numa coisa indescritível, tinham transferido a acção para Lisboa e arredores, e dado um rude golpe na ansiada oportunidade de internacionalização. Há muito que se provara, nesta santa terrinha, que um português para ter sucesso tem que sair daqui e ser apreciado no estrangeiro para depois poder voltar e suscitar a correspondente inveja. Tinha insistido em entrar logo no primeiro capítulo, já que se considerava exímia na tragicomédia e queria marcar o ritmo da narrativa com uma entrada de leão, no caso uma entrada de leoa, mas o editor tivera um peso excessivo e o narrador parecia não saber o que queria. Um verdadeiro caos, sem ordem nem governo. Talvez por isso tivesse decidido permanecer no projecto. Também porque já não era possível suportar as despesas do dia a dia apenas com o subsídio de desemprego. Um biscato, ainda que numa narrativa aérea e pouco credível, era melhor do que nada, enquanto não substituíam mais um ou dois ministros por outros ainda piores.
Uma manifestação contra o governo caracteriza-se sempre por ter poucas pessoas mas boas. Verónica chegou ao Rossio e ficou hesitante sobre qual dos pequenos grupos que por lá andavam seria a manifestação dos piercings. O calor exagerado para a época mas relativamente ameno se descontarmos o aquecimento global, fazia com que mesmo os mais extravagantes procurassem a sombra. Verónica que tinha com o Sol uma relação muito próxima de tu cá tu lá, achava deprimente que as pessoas se protegessem do que considerava o verdadeiro e único Deus, que trouxera a vida e a levaria quando muito bem entendesse. Tinha estudado física nuclear há muitos anos, quando fora obrigada a tirar um curso para ser alguém na vida, já que não tinha estofo para se dedicar a procurar um homem que lhe desse, como a mãe dizia, sustento e dignidade. Ela estava-se nas tintas para a dignidade mas falhava na questão do sustento porque havia sempre coisas e mais coisas que eram necessárias e a maioria das pessoas não levavam a bem ser roubadas por pobres, embora não se importassem nada de ser roubadas por ricos, o que até parecia para alguns ser uma honra.
(continua)

Torcato Matos

domingo, agosto 13, 2006

Ninguém

Todo o Mundo anda a Roubarte!

Som

Esta casa, agora, tem um silêncio morto. Os sons que chegam lá de fora, cheiram a ecos secos. A luz que passa pelas cortinas embacia os olhos e faz sombras nas lombadas. Há por aqui um silêncio morto que não se esconde. Salta à vista por cima dos móveis e ressoa assombrado nos cantos onde o pó se arruma.

Não costumo ter amor aos lugares. Sei da sua temporalidade e temo-a, e por isso não quero nada que me ligue a eles. Mas é inútil não querer ter sentimentos quando eles sentem por si sós. O telefone já não toca a surpresa que às vezes acontecia. Menos ainda a campainha da porta que nunca tocou nem esperei que tocasse. Não acendo o fogão. Prefiro queimar o tempo refazendo outra vez a história, recontando-a a mim e ao silêncio morto da casa.

Espero que as janelas abertas levem um pouco da sufocação que aqui se acumula. Circula algum ar fresco mas traz um cheiro já cansado. Também o ar já se esgotou a entrar e a sair de milhares de pulmões famintos. Agradeço-lhe a solidariedade mas não sinto nada ao agradecer.

Tentei pôr uma música, encher um pouco o silêncio com alguma harmonia, dar à casa um vapor capaz de a desassombrar. Não foi possível continuar porque a música, qualquer música, traz com ela memória, e por agora, por enquanto, a memória dói como se fosse um espinho.

Rasguei uma folha do calendário que tinha ficado esquecida e pensei que poderia ser isso. Poderia ser o tempo parado do calendário que tinha deixado imobilizados o silêncio e a sorte. Eu sabia que não era assim mas quando se convive com o silêncio morto começa-se a ter comportamentos desajustados e infiltrações de abandono nas articulações.

Fico a pensar nas muitas coisas que há para fazer e que agora não parecem ter importância nem força para me mover da letargia do silêncio morto. De repente tudo é feio, inútil e bronco. Não há para quê que justifique um movimento em falso. Apetecia-me chuva. Muita chuva lá fora a inundar os caminhos, sons de trovoada, vento medonho, aterrador. Queria os elementos a jogar do meu lado, a sacrificarem-se por mim.

Mas não há nenhuma ligação entre as coisas. Este silêncio morto que aqui jaz nesta casa, não tem a ver com nenhuma outra coisa do universo. Está aqui por acaso como poderia estar noutro lado qualquer, a ser sentido por outra pessoa qualquer que como eu, ou ao contrário de mim, não soubesse o que fazer para se livrar dele. Gostava que ainda fosse como antes quando eu acreditava que havia relação entre os acontecimentos do mundo e podia, por isso, ambicionar a ter algum papel no evoluir das situações. Aí eu acreditava - e ao acreditar sentimos o que acreditamos mesmo que não seja - que podia fazer alguma coisa para o silêncio morto se ir embora, ou ressuscitar, ou transformar-se em música, ou outra coisa qualquer que pelo menos me enchesse de actos e palavras até que deixasse de sentir ou pensar a morte do silêncio.

Beatriz Teresa
(post anterior)

sexta-feira, agosto 11, 2006

A dificuldade de ler (39)

- Devo então pedir a minha demissão. É isso que você quer, Weissmuller, que eu abandone a empresa.
- Isso é uma maneira trágica de dizer a coisa. O Franz já abandonou a empresa há muito tempo. Não sei precisar quando, mas há um momento em que deixou trabalhar para o grupo e passou a trabalhar para outra entidade que me abstenho de referir.
- Que está a insinuar, Weissmuller? Dedico-me cem por cento a esta empresa.
- Admito que esse seja o seu sentir. Daí eu poder dizer que não sabe tudo a seu respeito. É suposto que um organismo funcione por cooperação das suas partes. E cada parte funciona tendo em vista o bem global do organismo. A parte não se dedica ao organismo: integra-o, é o próprio organismo. Houve um momento em que o Franz passou a olhar para a empresa como se estivesse do lado de fora. Lamento dizê-lo assim, mas foi isso que aconteceu.
- Isso é um disparate.
- Só quando se está do lado de fora é que se começa a ter um olhar crítico sobre o organismo; começa-se a contestar, a sentir que há coisas que não estão a ser bem feitas, a falar de ética e moral e respeito e não sei mais o quê. Isso corrói, Franz. Estraga o bem estar do sistema. Tomamos o pulso, vemos a temperatura e sentimos o organismo em desarmonia. Há um 'corpo estranho' a contaminá-lo.
- Eu sou esse 'corpo estranho'?!
- Não é nada de pessoal, Franz. São medidas instrumentais, medidas médicas. O organismo deve ser protegido das infiltrações perigosas. A afinação, a produtividade, a imagem exterior, a alegria interior, tudo depende de não haver areia na engrenagem. É uma terapêutica. A radiografia indica um corpo estranho. Temos de começar por aí.
- Acha que eu ponho a empresa em perigo?! Que é que eu fiz de tão grave? Discordo dos novatos, dos métodos agressivos. Discordo de caluniar a concorrência. Os nossos produtos são bons, valem por si. Para quê denegrir os outros. Mesmo que fosse verdade...

- Aí está, Franz. Você já não está cá. Saltou pela janela, como ia saltar ali fora trinta e três andares. Espalhar-se aos bocadinhos lá em baixo e lixar a empresa com publicidade negativa. Você incorporou o exterior do grupo e agora já nem consegue raciocinar de acordo com o que é importante. E repare que é tão grave que nem tira nenhum benefício dessa situação. Rebenta consigo e rebenta com o grupo. Imagine amanhã nos jornais: quadro superior da Coriander Systems Enterprise atira-se pela janela e esborracha-se na via pública, perturbado o trânsito e a cotação em bolsa.
(continua)

Torcato Matos

Pitrol

Nada disto faz sentido e ainda assim a gente insiste. Diz umas coisas a seguir às outras cheio de vontade de ter razão mas pouco disposto a pensar muito nesse assunto ou noutro qualquer. Deixar discorrer as palavras de maneira abundante. Consentidas mas não sentidas. Quando digo a gente falo de mim que sou o meu agente e o meu objecto de crítica construtiva. O não saber é apenas uma forma como outra qualquer de retardar o avançar da hora a caminho de coisa nenhuma. Esta velocidade louca com que avançamos não é o tipo de velocidade de quem quer chegar a algum lugar. Não. É apenas a velocidade de quem foge mesmo que não saiba de quê. E não sabe de quê. Claro que não sabe de quem. A gente que anda por aí, eu, portanto, passa pelas coisas sem as ver nem as perceber e num certo sentido - que é o mesmo que dizer sem sentido nenhum - é mesmo esse prazer de não saber nem sentir que se procura. Para quê andar a tentar fingir que tal e coisa, que era interessante ir agora ver uma exposição muito engraçada que até falaram no jornal e depois chegar lá e não conseguir perceber nada daquilo e, pior ainda, ter que dar a impressão que se percebe para manter a ilusão das coisas e não criar um brusco solavanco no mundo. E o problema não está na exposição. Está na dificuldade em perceber as coisas. Cada um, eu também, às vezes, acrescenta um digito ao código de maneira a que a coisa se torne o mais obscura possível e não há paciência, é que não há mesmo paciência. Imaginem agora que para ir ver uma exposição e passar uma tarde bem passada cheia de surpresas e reconhecimento eu tinha antes de ler meia dúzia de manuais e mais não sei quantos catálogos e até saber a história da coisa. Não. Perdi o comboio num lugar qualquer e agora já não dá. Já não consigo acompanhar. Já não estou em condições de me preparar para as piscadelas de olho e ficar muito contente por pertencer ao clã. Qualquer que seja o clã. A facção oculta dos iniciados na obra sincrética do ídolo dos anos noventa que pintava os tectos dos subterrâneos dos sarcófagos de Minsk! Não. É claro que não. Ao virar da esquina há sempre outra coisa potencialmente mais interessante para me surpreender. Digo eu que não sei o que há ao virar da esquina nem estou preocupado com surpresas. Se queremos ser surpreendidos, nós, a gente, eu, damos uns gritinhos, meio histéricos, meio emotivos, meio fingidos, meio vamos lá a animar este pessoal, usando técnicas muito giras, e muito verdes, e muito sorridentes. Eu queria dizer parecer surpreendidos mas já nem vale a pena estar com distinções entre coisas que valem o mesmo seja lá onde for. Pois a questão deve ser essa (continuo estupidamente à procura de palavras mais importantes e fundamentais do que outras), o valor. Vale ou não vale e se vale quanto vale. Traduz-me isso em euros, em dólares, em barris de petróleo. Deve ser isso. Chego sempre a qualquer coisa parecida com barris de petróleo mas não vejo como tomar isto como uma fixação da infância. E perco-me. É a tal questão do sentido, ou da falta de sentido. Sei lá do que estou a falar quando falo de barris de petróleo.

Artur Torrado

quinta-feira, agosto 10, 2006

A dificuldade de ler (38)

- Você não sabe tudo sobre mim. Só sabe o que eu deixei que soubesse.
- Engana-se. Eu sei tudo sobre si. E por isso sei mais sobre si do que você.
- Então a sua teoria está errada porque mesmo sabendo tudo não tem poder sobre mim.
- Ó Franz, eu sou um homem pacífico. O poder não me interessa. O poder é um mecanismo que apenas interessa a quem tem carências de diversa ordem. Não é o meu caso. Não passo a vida a comparar-me com os outros. Num mundo são, a avidez de poder seria um sintoma passível de internamento compulsivo. É o primeiro dos sintomas do sentimento de inferioridade. Só quem não se sente bem na sua pele é que precisa da pele dos outros e de mostrar aos outros que a sua pele é de melhor qualidade.
- Lamento dizer-lhe, Weissmuller, mas o seu asilo de ávidos de poder haveria de ter uma dimensão considerável. Quem sabe se não é isso mesmo que já está a acontecer sem que nos demos conta: vivemos num asilo de ávidos de poder! Que quer de mim? Porque tenta seduzir-me com essa conversa?
- Gostaria muito de lhe dar uma razão prática, Franz. Mas existem factores que ultrapassam o meu gosto particular. E neste caso estou aqui como médico de trabalho de uma empresa que compete no mercado internacional, uma empresa que precisa de comer outras para não ser comida. E nesta selva a lei é a mesma de todas as selvas. A mesma lei que regeu a evolução, eliminando os mais fracos, que é como quem diz, os que não se conseguem adaptar, os que não estão à altura do que o momento exige.
- Quer dizer-me que eu vou ser eliminado? Vai mandar-me para a câmara de gás?
- Como já lhe disse, não tenho poder. A minha posição de médico de trabalho é, digamos assim, adjacente aos mecanismos de poder. O mais que eu faço é dar pareceres. Digo o que penso depois de analisar tecnicamente as situações, mas em caso algum tomo decisões fora do estrito campo do meu foro pessoal.
- As suas opiniões têm peso. Não há ninguém nesta empresa que não tenha já sentido a força das suas opiniões. Para o bem e para o mal.
- É um exagerado, Franz. Opiniões temos todos. Os meus pareceres são fundamentados, não são emissões de emoção. Se ler os dossieres verificará o escrúpulo do meu critério.
- Qual é então o seu 'parecer' a meu respeito? Vai puxar-me para cima ou para baixo?
- Franz, você sabe, e aí tão bem como eu, que nesta empresa atingiu o seu nível de incompetência. Há anos que não é promovido porque o seu sector deixou de ter crescimento. Como sabe, isso é mau para a saúde da empresa.
(continua)
Torcato Matos

Vida

Estava à tua espera, portanto. Os dias tinham-se tornado cinzentos e a luz era uma mágica definição de sombras. Tínhamos decidido, sem ter decidido nada, que o local do reencontro era aquele em que por momentos fôramos felizes. Por acaso.

Estava à tua espera, portanto, embora soubesse pelo valor da experiência que não era agora que virias, nem seria amanhã a véspera desse dia, como esperam os gauleses. Esperar-te passou a ser um gesto repetido por hábito e por não saber que outra coisa fazer. Dirás que não é uma espera digna desse nome, que merecias mais, que continuo a soletrar os mesmos textos da infância, as mesmas hesitações, os mesmos costumes limitados e passivos.

Estava à tua espera ontem, como vou estar hoje. Como estive sempre. Espero aqui sentada, redigindo o testamento do meu tortuoso sonho, viajando na mescla de imaginação e memória que te fazem no interior de mim. Soubera eu este destino e teria dito ao meu corpo que te evitasse, que não adoptasse o vício temerário de te querer, que não te deixasse entrar no lugar escuro que sou eu. Mas nunca sabemos nada do futuro. Ou sabemos. Sabemos tudo do futuro e mesmo assim rodamos a nossa certeza para off e avançamos no presumível imponderável, sabendo que vai ser mais uma vez o mesmo futuro que vimos no filme acelerado da infância. Fazer de conta. Perder, perder outra vez e sempre.

Estava à tua espera para te falar do silêncio que entretanto veio e ocupou todos os lugares disponíveis. Tenho um longo discurso preparado de que já esqueci as partes mais comoventes, porque entretanto o meu coração endureceu, como é próprio dos corações que batem sempre no mesmo ritmo mesquinho da submissão. Como é próprio dos corações que se apegam ao impossível.

Estava à tua espera relendo as cartas que fui escrevendo e não pude enviar, porque entretanto o teu paradeiro se perdeu na infinidade de lugares do mundo. Ficaram aqui, também as cartas, à tua espera. Mais alegres que eu, mais firmes nas suas decisões, mais claras nos seus propósitos e nas suas ambições, menos vulneráveis ao tempo no seu frágil papel. Na verdade, já nem sei se fui eu quem as escreveu ou se se escreveram a si próprias, ditadas pelo crepúsculo.

Estava aqui à tua espera comparando a leveza dos aromas que partilhámos, com o peso betuminoso que o tempo calcou sobre os meus desejos. Espero-te como espero a morte. Só que desejava que viesses antes, um pouco antes, a tempo de eu desaparecer feliz, como espero que aconteça quando a espera terminar.

Beatriz Teresa
(post anterior)

quarta-feira, agosto 09, 2006

Superfície

O meu modo de vida é andar à superfície. Há uma pele nos objectos que delimita, com clareza quase ilimitada, o seu lado exterior do seu lado interior. Claro que só o digo assim porque estou a olhar para os objectos na minha perspectiva superficial e portanto também a clareza quase ilimitada a que me refiro é uma clareza quase ilimitada mas superficial. Também é à superfície das coisas, dos objectos portanto, que sou capaz de encontrar, sem grande esforço - como é próprio de andar à superfície - um lado exterior, que é, por definição e prazer, o meu lado, e um lado interior que, por razões próprias do meu modo de vida, só me interessa de maneira muito superficial.

Aqui à superfície sou mais do que eu. Como se estivesse ao leme, levando a nau a bom porto.

Os corpos interagem pela respectiva superfície. Tocam-se, mas não se chegam a tocar verdadeiramente. A parte de um corpo que toca a parte de outro corpo é apenas a instável e probabilística e quântica nuvem electrónica das suas moléculas que toca apenas a quântica e probabilística e instável nuvem electrónica das moléculas do outro corpo. Nesse toque há sempre, numa superfície cuja mínima espessura desafia a imaginação, uma troca de electrões que se se desse o caso de terem uma individualidade ou um nome próprio, dariam a um investigador, ainda que superficial, a hipótese de saber que objecto tocou em que objecto, que corpo roçou em que corpo, que coisa chocou com que coisa.

É à superfície que ocorrem os contactos. É à superfície que ocorrem as trocas. É à superfície que se traçam os caminhos e se percorrem as estradas e se escrevem os desejos.

Se a terra fosse uma maçã, a espessura habitável seria a fina casca. É aí que eu moro, nesse lugar apertado mas suficientemente vasto para as minhas exigências.

O meu sonho é ir ao fundo das coisas. Existe textura, forma e peso debaixo da pele. O único mal de andar à superfície é a incómoda e permanente sensação de haver uma massa que nos suporta, um plano que não é o nosso plano, um fundo a que não acedemos, uma espessura que é mais espessa que a razão, um interior que existe sempre, mesmo quando tentamos desvendá-lo. O que não está à superfície pressupõe o absurdo da crença. Deixo isso para o sonho. Adormeço na fase líquida e mergulho na lava, à espera de perceber, à espera de saber o que é a verdade. Durante o sonho pego nas moléculas dos objectos e separo-as umas das outras à procura da razão porque estão ali, como se se sentissem bem a fazer um corpo maior que elas, como que quisessem cooperar.

Aqui, no fundo, sou mais do que eu. Pedaço atómico de um formigueiro que se estende pelos continentes. Os corpos não sabem do interior uns dos outros. Permanecem na ocultação de não saberem de si próprios, daquilo que move a quilha para estibordo. Sonho então que sei o que está aí dentro, no interior que parece conter a razão das coisas e fazê-las inesperadamente mudar de rumo, mesmo que a superfície calma, a planície fleumática, o vagar manso das águas pareça mostrar a paz do instante imediato.

À superfície sonho o interior dos objectos, as hipóteses para as estruturas, o movimento telúrico dos magmas. Na lâmina rasa dos instintos leio os sinais do desconhecido. Não creio que o interior nos queira, de livre vontade, mostrar-se como é, revelar-se, tornar-se exterior. O que não é suportável é a pressão absurda do inconsciente à procura de caminho no acaso dos batimentos cardíacos. Se quisermos, a verdade é isso: o abalo sísmico que diz o que é o fundo das coisas. Todo o fundo é um sonho da mesma forma que a superfície é real. Desvendar é transformar fundos em superfícies, interiores em exteriores, medos em banalidades.

Prólogo

A dificuldade de ler (37)

Franz, vendo que Weissmuller não terminava com os seus incompreensíveis disparates acerca do Sudoku, deu meia volta e encaminhou-se para a saída que dava acesso ao elevador. O rosto tinha-se transformado em pedra amassada por contradições de uma queda abismal sobre a escarpa aguçada de uma longa encosta. Weissmuller não tinha acabado o seu discurso apologético de quebra-cabeças numéricos.
- Franz! Onde vai? Eu estava aqui à sua espera.
Franz voltou a estacar. Um catavento precisa de vento como de pão para a boca. Humm. Não é uma boa frase. Não vem a propósito. Há que ter em conta o contexto sócio-político. Por vezes a elisão pode chegar a extremos de ilegibilidade e esse nunca é o propósito. Mas há várias teorias que defendem não ser necessário expressar tudo para que a comunicação passe. Alguém (A, por exemplo) dirá: eu diria da mesma forma. É uma verdade, certas incorrecções da linguagem ganham estatuto e tornam-se emissoras de informação correcta. E não estou a pensar neste caso concreto. O que também não é uma boa frase.
- Franz, não vou ter a indelicadeza de lhe perguntar o que veio aqui fazer, mas devo informá-lo que conheço as suas intenções, respeito-as e estou disposto a ajudá-lo desde que escolha outro caminho.
- Continuo a não saber do que fala, Weissmuller.
- Falo de jogos, Franz. Talvez não saiba do meu interesse por jogos. É natural. O médico conhece os seus pacientes mas os pacientes não sabem nada sobre o médico. Há uma extrema assimetria. É assim com todas as relações de poder: “quanto menos souberes sobre mim mais poder tenho eu sobre ti”. Não estou a citar ninguém, ocorreu-me agora, mas já deve ter sido dito por alguém (A, talvez). Já tudo foi dito, caro Franz. Já se fez tudo o que havia para fazer. A diversidade está esgotada. Cada um de nós apenas pode repetir um gesto já milhares de vezes utilizado. A nossa época já não tem hipóteses de originalidade. Limitamo-nos a reciclar acções em cenários reciclados com motivos reciclados e intenções recicladas. Até a barbárie, Franz. Até a barbárie é reciclada.
- Que quer de mim, Weissmuller?
- Protegê-lo, Franz, protegê-lo. O juramento de Hipócrates obriga-me, e neste caso faço-o de boa vontade.
- Proteger-me de quê? Que é que me pode fazer mal?
- Você, Franz. O Franz é o tipo de pessoa que não faz mal a uma mosca. Quando sucede necessitar de agredir alguém para repor alguma ordem no mundo, escolhe-se como vítima. Você é Cristo, Franz, Cristo.
(continua)

Torcato Matos

terça-feira, agosto 08, 2006

A dificuldade de ler (36)

A pontualidade britânica de Franz fez-se notar no momento em que chegou ao trigésimo segundo andar e, de olhar focado num horizonte que só ele via, se encaminhou para a plataforma de onde mais longe se avistava o mundo naquele edifício.
- Franz!
A voz inesperada de Weissmuller travou o ímpeto de Franz que estacou ao mesmo tempo o passo e o olhar focado no tal horizonte.
- Há momentos desagradáveis em que estes jogos de números me parecem insolúveis e me sinto objecto de gozo do não-identificado (NI) que o fez. Como se o NI tivesse a intenção de criar o caos na cabeça daqueles que se entretivessem a resolver os seus quebra-cabeças.
- Não esperava encontrá-lo aqui Weissmuller.
- Mas por outro lado a minha fé na natureza humana leva-me a acreditar que o NI não teria esses maus instintos e que, por exemplo, posso estar perante uma gralha: alguém (A) ao transcrever o problema pode ter-se enganado num número ou na posição em que o colocou e com isso ter gerado um problema impossível.
- Deveria estar a cuidar dos seus doentes Weissmuller.
- É engraçado pensar que a simples troca de um número por A pode tornar o possível em impossível. Um pormenor de tão pouca importância a torcer para sempre a uniformidade do sentido.
- Não percebo do que está a falar Weissmuller.
- Nunca resolveu um problema de Sudoku, Franz?
- Não, Weissmuller. Não perco o meu tempo com inutilidades.
- A mim dá-me gozo enfrentar estes pequenos demónios. Uma única saída num pequeno labirinto. Genial, meu caro Franz. Genial. Porque os momentos desagradáveis de que lhe falava há pouco, são parte integrante da genialidade. Há mesmo, nos melhores problemas, um momento de desespero. A fé desaparece, procuramos um ponto qualquer onde segurar o que nos resta e os números mostram os caminhos todos tapados.
- Weissmuller, será melhor irmos descendo.
- Mas a seguir descobrimos uma brecha na muralha e renasce a esperança. Há uma saída! Há uma solução! Não há indeterminação nem redundância. Confesso-lhe que é um momento avassalador.
- Tenho que ir, Weissmuller, vão dar pela minha falta no meu gabinete.
- E há jogos, Franz, em que esta apoteose é múltipla! O desespero e a esperança alternam várias vezes e deixam o coração em alvoroço.
(continua)
Torcato Matos

domingo, agosto 06, 2006

Frio

Hoje não subo ao topo da montanha.
Não levo a pedra, nem o meu corpo, nem o pensamento ao alto.
Hoje a força da gravidade não fará o seu trabalho que, como o meu, é um castigo dos deuses.

O calor do dia queimou as minhas mãos e tornou impossível outro sonho.
O que valia a pena ontem não vale a pena hoje.
Pelo calor, pela importância das chamas que vão consumindo a floresta.
Também pelo ar seco que leva a garganta a perder a voz.

Hoje, excepcionalmente nego o castigo dos deuses.
Sei que cada negação dobra a pena e cada desobediência multiplica a ira.
Mas, mesmo assim, hoje não subo lá ao alto do esforço.

Haverá outros dias em que pagarei os juros.
Noutra altura saberei ser mais forte e penar a minha pena com entusiasmo.
Pode mesmo haver a improvável sorte de os deuses perdoarem o meu desvio.
Pode mesmo acontecer que eles percebam as minhas razões e esqueçam este acaso.

Hoje, seja como for, não vou lá, não me mexo daqui desta imobilidade.
Não me apetece sequer pensar nas duras consequências dos meus actos.
Hoje, sem exemplo, fico à espera que o tempo arrefeça e as chamas se apaguem.

Tudo seria diferente se eu soubesse como contrariar o corpo.
Se em algum momento da minha vida eu tivesse aprendido a dominar a besta.
Se, como é próprio de quem quer andar neste mundo, eu tivesse olhado com mais cuidado para a natureza informe da paixão e a tivesse sabido colocar à margem do ser.
Tudo seria diferente se eu soubesse.

Mas hoje, por não saber, fico aqui à espera que o tempo leve este dia.
E fico à espera também que os dias seguintes o esqueçam e possa tudo não ter passado de um efeito secundário do calor.
Talvez amanhã eu consiga por um pedra sobre o assunto.

Sísifo

A dificuldade de ler (35)

"Franz é um praticante entusiástico do suicídio”, disse o chefe de Franz ao minuto dezassete da reunião matinal de chefes de vendas. A minha fonte garantiu a hora exacta, o nome de Franz e o termo suicídio. E garantiu também que o sentido da frase era este. Mas garantiu ainda que não se tratava de uma transcrição literal porque tinha ouvido pelo menos uma outra versão que dizia: "Franz é um suicida entusiasta". No entanto, o meu editor, perante as duas hipóteses, deu-me a entender que esta última frase poderia ser uma adaptação involuntária do título "O suicida entusiasta" de Dries Van Coillie e achou mais verosímil a primeira frase. Confesso que me confundiu esta explicação, porque o título da edição inglesa - "I Was Brainwashed in Peking" - é muito menos literário que o original holandês - "De Enthousiaste Zelfmoord" - e menos susceptível de ser vítima de uma adaptação involuntária, mas dado o estado relativamente degradado das minhas relações com o meu editor achei melhor não o contrariar.
O Dr. Weissmuller pôde ver, a partir do seu confortável gabinete, mas com o desconforto habitual que o chefe dos chefes de vendas lhe provocava, a mudança de cor que a frase produziu no rosto ansioso de Franz. Sabia que devia agir rapidamente e deslocou-se com o seu passo enérgico para o vestiário onde trocou o casaco por uma bata branca desenhada há muitos anos por Hugo Boss. Em seguida, munido do seu telefone portátil interno, subiu no elevador de serviço ao trigésimo segundo andar. Sentou-se na sala de acesso ao hangar de helicópteros e dispôs-se a esperar, dando graças a Deus por ter no bolso da bata um espesso livro de sudokus.
Enquanto procurava o número certo para cada casa, lembrou-se que nunca chegara a comprar nem a ler "O suicida entusiasta". Parecera-lhe sempre um título demasiado expressivo para sobrepor a uma história e, talvez injustamente, acreditara tratar-se de um livro escrito unicamente para aproveitar um título paradoxal. E não era de paradoxos que o Dr. Weissmuller gostava. O sudoku era muito mais claro: cada problema, uma única solução.
(continua)

Torcato Matos

sábado, agosto 05, 2006

A dificuldade de ler (34)

Ao contrário de Franz, o chefe dos chefes de vendas - e por consequência chefe de Franz - era um enigma para o Dr. Weissmuller. Por essa inconsistência naquilo que ele considerava a sua Teoria Dinâmica do Homem (TDH), tivera o chefe de Franz sucessivos e injustificados pareceres positivos da parte do Dr. Weissmuller, que muito contribuíram para a sua meteórica ascensão hierárquica. Tudo isto, como é fácil de imaginar, tem um peso inusitado na consciência geométrica do médico de trabalho, habituada pela disciplina, pela história e até pelo clima, a uma linha ininterrupta entre todas as causas e todas as consequências. Se quiséssemos ver as coisas numa perspectiva meramente humana, já poderíamos considerar rudemente humilhante que o chefe de Franz, cuja qualificação académica é, digamos assim, um mistério, faça questão, nas raras vezes em que se dirige a Weissmuller, de lhe referir o título com a voz firme e perfeitamente articulada.
Na manhã seguinte à constatação por parte de Franz de que o mundo estava a mudar de uma maneira que contrariava o próprio sentido das realidades que tão arduamente perseguira, durante a reunião com o chefe dos chefes de vendas e os outros onze chefes que, como ele, coordenavam as equipas que esquadrinhavam cada milímetro do potencial aquisitivo do Império Britânico e de alguns países estrangeiros, o chefe de Franz e dos outros chefes de vendas acendeu, como habitualmente, o seu primeiro cigarro e as baforadas iniciais instalaram o habitual silêncio expectante entre os inquietos participantes da assembleia. Não havia nenhum precedente que determinasse para o primeiro cigarro do dia uma gradação especial de importância da frase que lhe estivesse associada. Os estudos encetados pelo perplexo Dr. Weissmuller não tinham encontrado nenhum padrão que pudesse encaminhar um investigaror metódico para fórmulas práticas de previsão do pensamento fumegante do chefe dos chefes de vendas. Nenhuma disciplina, nenhuma sucessão, nenhuma simetria, nenhuma arrumação, nenhum ritmo. Mesmo no campo do aleatório a distribuição tinha um carácter errático.
O Dr. Weissmuller não participava nas reuniões do conselho de chefes de vendas. Tinha acesso directo pelo circuito interno de televisão, e por razões puramente científicas, através do uso de uma chave digital por especial deferência do conselho de administração e permissão expressa do próprio chefe dos chefes de vendas. Era da sua sala que sempre que podia tomava a necessária atenção ao momento especial em que a dada altura, não previsível, era proferida a primeira frase do primeiro cigarro.
(continua)

Torcato Matos

sexta-feira, agosto 04, 2006

A dificuldade de ler (33)

Weissmuller era o terceiro filho de um importante quadro do III Reich e tinha prometido a si próprio uma dedicação total à ciência e à salvação física dos homens, para compensar o ainda não explicado desvio do pai em relação aos bons princípios da deontologia médica e da boa prática clínica, que as circunstâncias especiais da guerra - e a guerra tem sempre razões que a razão desconhece - tinham despoletado num homem tradicionalmente afável, amigo dos seus amigos e preocupado com a sobrevivência da espécie naquilo que ela tinha de melhor e portanto dos seus melhores e superiores elementos. Naquela empresa, Weissmuller não queria ser um médico de trabalho rotineiro e por isso tentava ir mais longe na apreciação do estado de saúde e de espírito dos seus impacientes colegas. Tinha adquirido prestígio e conseguido eliminar o sotaque germânico, dois esforços que, em casa do inimigo, consumiram os primeiros anos de exercício e o tornaram uma inesperada peça chave da intrincada estrutura da empresa. Pode dizer-se que há anos que nenhum parecer transpunha um nível que fosse da cadeia hierárquica sem uma, ainda que ligeira e não oficial, pincelada opinativa do Dr. Weissmuller. Não é necessário dizer mas digo-o na mesma, o intenso orgulho que Weissmuller transpirava ao sentir como reconheciam a sua evidente superioridade moral e mental. A questão da superioridade física resolvia-se através da sua insuperável perícia tanto no golfe como no ténis, em que há vários anos recebia o cobiçado prémio da associação de empresas do sector, e na postura charmosa com que enfeitiçava o sector feminino desde a quarta sub-cave onde laborava o pessoal menor até ao trigésimo terceiro andar de onde a administração pensava o futuro com uma soberba vista - quando o nevoeiro deixava - sobre a distância paciente do rio.
O campo complexo das investigações do Dr. Weissmuller não se enquadrava na tradicional terapêutica de dar umas pastilhas para aliviar as dores e as irritações. Cada caso é um caso, diria ele para os seus colegas que tentavam entrar em generalizações apressadas - podendo considerar-se uma generalização apressada generalizar que todas as generalizações são apressadas. No caso de Weissmuller - ele prescindia amistosamente do título considerando que era tão evidente a sua qualidade de doutor que deixava a designação para uso naqueles em que pudesse persistir a dúvida - não só cada caso era um caso como se distinguia de todos os outros, não num pormenor mas em inúmeras e inconciliáveis diferenças. Num sentido muito próprio ele sabia que tinha a solução para quase todos os casos que lhe passavam pelas mãos. Mas - e este mas é sumamente importante - não considerava que fosse da competência do médico proporcionar felicidade ao paciente. Tinha sim a obrigação concorrente de manter a vida e reduzir o sofrimento até aos limites do suportável. Tal perspectiva poderia facilmente colidir com inúmeras outras - e em certa medida com as de alguns dos trabalhadores da empresa - mas era bem vista pela hierarquia que tinha há muito detectado em gráficos de elevada definição, uma correlação inversa entre a felicidade e a produtividade.
(continua)
Torcato Matos

quarta-feira, agosto 02, 2006

A dificuldade de ler (32)

Os acontecimentos precipitaram-se sem que Franz tivesse oportunidade de contrariar a ordem pouco natural que as coisas pareciam procurar quando estavam à mercê da ambição e da estratégia comercial. Tinha preparado aquela equipa com um empenho que lhe custara dois casamentos e pensão de alimentos para sete vidas que se estendiam entre os três e o dezassete anos; vários anos sem tempo para férias nem para ir à Escócia natal; dores periódicas de coluna e miopia galopante; preocupações diárias; milhares de relatórios; anos inteiros de reuniões e incontáveis serões de formação para egoístas preguiçosos ansiosos por ser rapidamente ricos... Uma vida deitada fora através da dedicação a uma causa que agora era posta em causa por uns galarós acabados de sair de uma escola profissional cheia de inteligência emocional e vazia de preconceitos, mesmo daqueles preconceitos que são essenciais para uma vida minimamente digna. Para Franz parecia o fim. O fim dele e o fim do mundo que são duas coisas inseparáveis e estritamente relacionadas.

O chefe de Franz, cujo nome não me ocorre agora, adquirira com o andar dos anos uma sabedoria de que não tinha hipótese de partilhar, pelo menos entre aqueles que já tinham ganho o hábito de o considerar louco, senão os míseros efeitos especiais que a tradição e o mito impõem. Também ele tinha penado para se tornar, naquela empresa, o chefe dos chefes de vendas, e esse lugar, ambicionado por seis em cada dez dos seus colegas – segundo os censos de dois mil e três, potenciava a inveja, a intolerância e um espírito selvagem que parecia vir directamente dos primórdios da evolução. A sabedoria do chefe de Franz, resumia-a o próprio a uma frase: não emitir mais do que uma frase com significado durante cada cigarro. Tal postura económica permitia que com um cigarro na mão se criasse a expectativa de uma reflexão muito profunda que seria linearmente seguida por um aforismo que mesmo que não fosse aforismo haveria de se tornar em tal. Porque a sabedoria do chefe de Franz era coroada por um corolário que se pode resumir a nada acontecer no intervalo entre cada dois cigarros.

O médico da empresa, anti-tabagista convicto – ou pelo menos tão convicto quanto é possível a um profissional ser contra os benefícios pessoais da sua própria arte – ruminava razões científicas que explicassem a interacção do dióxido de carbono ou do alcatrão ou da nicotina, com o peculiar cérebro do chefe de Franz e a descontinuidade mental que o caracterizava.

(continua)

Torcato Matos