quinta-feira, julho 13, 2006

A dificuldade de ler (16- P/P16)

Ele, Peter, tinha agora uma missão de carácter algo indefinido. Digo eu que nada tenho de omnisciente e preciso de me socorrer das fontes para não meter água.

Peço desculpa. O meu editor já me informou que a minha posição como narrador é muito ambígua e que eu devo tomar cuidado para não aborrecer ninguém com devaneios que só a mim dizem respeito. Por isso decidi que neste momento - que me soa a trágico - vou morrer como personagem desta história, passando a dedicar-me exclusivamente à elevada função que, num certo sentido, me é mais familiar. Os milhares de cartas que recebi até hoje a encorajar o meu interesse pela verdade, são quase unânimes na identificação da minha função como mero elemento de transmissão - reparem na cacofonia involuntária do 'ão' - da informação. Assim se dirá, daqui em diante, que o narrador participante jaz morto e enterrado.

O encontro que ele, Peter, tinha marcado com um certo desconhecido, com uma intenção ainda por esclarecer, tinha afinal acontecido com outro desconhecido que ele sabia agora chamar-se Bill e que o tinha salvo de uma cilada, pois outra coisa não era o encontro que tinha marcado com o primeiro desconhecido. A vida tem estas estranhas coincidências e Peter seguia, com estes pensamentos e pouco mais, na expectativa de conseguir que o seu passo largo e enérgico o colocasse em casa suficientemente antes de o sol nascer.

Elsa esperava-o, como sempre, com uma chávena de chocolate quente e um cálice de Porto. Davam-se bem. Não fora aquela dessincronia entre o dia dela e a noite dele e poderia até dizer-se que formavam o par ideal. Peter sentiu um esboço de ternura ao beber o chocolate gelado enquanto via os vidros do cálice espalhados e a mancha doce de vinho do Porto no écran da televisão. Mais uma razão para não gastarem uma pipa de massa numa frágil televisão de cristais líquidos.
(continua)

Torcato Matos

Sem comentários: