Ele, Peter, tinha agora uma missão de carácter algo indefinido. Digo eu que nada tenho de omnisciente e preciso de me socorrer das fontes para não meter água.
Peço desculpa. O meu editor já me informou que a minha posição como narrador é muito ambígua e que eu devo tomar cuidado para não aborrecer ninguém com devaneios que só a mim dizem respeito. Por isso decidi que neste momento - que me soa a trágico - vou morrer como personagem desta história, passando a dedicar-me exclusivamente à elevada função que, num certo sentido, me é mais familiar. Os milhares de cartas que recebi até hoje a encorajar o meu interesse pela verdade, são quase unânimes na identificação da minha função como mero elemento de transmissão - reparem na cacofonia involuntária do 'ão' - da informação. Assim se dirá, daqui em diante, que o narrador participante jaz morto e enterrado.
O encontro que ele, Peter, tinha marcado com um certo desconhecido, com uma intenção ainda por esclarecer, tinha afinal acontecido com outro desconhecido que ele sabia agora chamar-se Bill e que o tinha salvo de uma cilada, pois outra coisa não era o encontro que tinha marcado com o primeiro desconhecido. A vida tem estas estranhas coincidências e Peter seguia, com estes pensamentos e pouco mais, na expectativa de conseguir que o seu passo largo e enérgico o colocasse em casa suficientemente antes de o sol nascer.
Elsa esperava-o, como sempre, com uma chávena de chocolate quente e um cálice de Porto. Davam-se bem. Não fora aquela dessincronia entre o dia dela e a noite dele e poderia até dizer-se que formavam o par ideal. Peter sentiu um esboço de ternura ao beber o chocolate gelado enquanto via os vidros do cálice espalhados e a mancha doce de vinho do Porto no écran da televisão. Mais uma razão para não gastarem uma pipa de massa numa frágil televisão de cristais líquidos.
(continua)
Torcato Matos
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