É provável, até porque é costume, que tenha passado algum tempo entre o instante em que ele adormeceu e o instante em que acordou. Tinha anoitecido e ela já não estava presente. Também não estava presente em nenhum lugar da casa escura. A sala consultório estava envolta na penumbra de fumos já gastos e a cozinha emitia as manchas pálidas da televisão acesa, mais do que suficientes para encontrar às apalpadelas bolachas integrais sem colesterol e uma cerveja familiar.
A torre da igreja batia as horas mas eram demasiadas para ele perder tempo a contá-las. Mau a matemática, passara a também ser mau a contar coisas, a enumerar os objectos e os acontecimentos. De uma boca destas não saem factos nem interpretações.
Saiu pela porta para poder saber o estado do tempo no alpendre antes de se meter à estrada. Havia sombras de folhas no local onde, no dia anterior - melhor dizendo, num dia anterior - tinha depositado, sem grande entusiasmo os restos imortais de uma coisa estranha que tinha sentido.
Ao chegar ao local do encontro já se tinha esquecido da importância que tem a noite para esconder os desejos. Havia muita gente naquele lugar e isso tornava difícil distinguir o que era luz do que era reflexo e do que não era uma coisa nem outra mas o simples desejo de ver. Tinha dito a Elsa que o medo era apenas um instante; não durava mais do que o instante antes de saber: e antes de saber era necessário o medo, para que cada acto fosse mais do que um simples jogo de cartas.
(continua)
Torcato Matos
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