segunda-feira, julho 24, 2006

A Hilda

Temo dizer certas palavras como se ao dizê-las se pudesse quebrar um encanto e voltar contra mim forças estranhas e poderosas, capazes do bom e do mau e caprichosas quanto baste para me tiraram com a mão esquerda o que dão com a direita. Nestes momentos recordo Hilda. Imagino-me de novo com ela como aconteceu quando a mereci, há muito tempo, no auge, digamos assim, do meu potencial de sonho.
Conheci Hilda, como acontece nos milagres, não na altura em que mais precisava dela mas quando cresci o suficiente para a compreender. E mesmo assim foi demasiado cedo porque se soubesse o que sei hoje teria ficado com ela para sempre. Assim ela o quisesse também.
Naquela altura morava numa cidade grande, maior que esta, ou pelo menos parecia-me muito maior que esta, porque circulava com um rio dentro e isso dava-lhe uma dimensão de corpo vivo que tem sangue e veias e artérias, não era só o empilhamento de motores de combustão interna a derramarem desesperadamente moléculas envenenadas. Num dos lados da cidade havia um jardim de uma dimensão que eu nunca consegui esgotar e um dia, um dia inteiro, decidi, ou decidiu o acaso por mim, faltar às aulas para pensar enquanto percorria a passo os caminhos entre as árvores, entre os pássaros, entre os esquilos, entre os cisnes, entre algumas pessoas, poucas, umas mais estrangeiras que outras e entre elas Hilda, sentada, absorvida num livro que não era bem um livro, como ela me explicou depois de termos trocado olhares coincidentes de curiosidade e começado a falar do sabor agradável daquela brisa que afinal não soprava porque o tempo tinha parado por uma razão qualquer que ainda hoje, estes anos todos depois, não percebi.
Hilda era tão estrangeira como eu, estava ali apenas porque queria estar e tinha adquirido essa sapiência sobrenatural de saber e fazer o que queria, ignorando, sem se forçar a ignorar, disputas de alma ou questões internas de decisão ou hesitação.
Eu sei que já amava Hilda antes de a encontrar naquele jardim improvável e de ter tido com ela aquele diálogo impossível. Se ela me tivesse confirmado que era uma deusa - como ingenuamente lhe perguntei - em vez de ter aberto ainda mais aquele sorriso de conforto absoluto, eu teria embarcado naquele momento na sua nuvem de eterna transcendência. Depois ficamos calados, contemplando o movimento regular das copas e o vogar delicioso dos cisnes.
Dos meses seguintes não tenho mais imagens que as de Hilda. Depois achei que poderia haver algo ainda melhor. Pareceu-me que não me bastaria ficar pacientemente a escutar o arfar cauteloso dos arbustos à passagem das crianças alegres. Queria oscilar entre esses momentos bucólicos e a guerrilha atribulada de me confrontar com o inesperado. Hilda não se perturbou no seu afazer pacificado e deu-me a entender que eu fazia bem. Deixei-a no mesmo banco do mesmo jardim a ler ainda o mesmo livro que, como ela me mostrou, não era bem um livro.
A ausência de Chris, de quem não sei há alguns meses, parece ter colocado aqui em casa a imagem de Hilda a procurar no seu livro de significados ocultos, as frases de que não sabemos o fim porque se perderam com a erosão do desejo. Hilda pode mesmo ter sido uma deusa que tive o privilégio de conhecer e que hoje, tarde demais, continuo a procurar como aconteceu anos mais tarde quando voltei ao mesmo jardim, ao mesmo banco, e aí encontrei ensanguentada uma pomba branca.

Ivo Cação

('post' anterior de Ivo Cação)

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