segunda-feira, julho 24, 2006

A dificuldade de ler (26)

Eu sei que não sei dizer com objectividade o que me prende ao Peter, nem sei se posso encontrar alguma coisa de partilhável no que sinto, para poder, por momentos, ser coerente a minha precisão de pensar que não tenho que sentir o que outros esperam que eu sinta ou que me habituei a pensar que é costume sentir. É provável que precisemos de alguns pontos comuns para comunicar. Deve ter havido em algum momento da evolução um compromisso entre a liberdade e a comunicação: para partilhar o que sei tenho que me sujeitar às regras da partilha e ser um pouco menos livre do que seria se não tivesse essas regras. O Peter é para mim um compromisso, nada mais nos liga que uma palavra qualquer que teremos dito um dia já avançados na bebida e no prazer e no jeito saciado com que as palavras saíam sem entraves nem dissonâncias.

O que temo agora, Doutor, é que os acasos da rua o tenham apanhado na sua perversidade e os afectos da atenção o tenham prendido a uma estaca qualquer de certezas e absolutos. Temo, Doutor, que uma voz um pouco mais astuta lhe tenha segredado propósitos extraordinários para uma vida, e em vez da sua proverbial aversão aos provérbios tenha agora encaminhado o sentido para uma forma de missão outra que a de não ter missão alguma. Confesso que estava relativamente bem com a sequência inútil de nada acontecer, de os dias serem tão claros e possíveis como as noites, de, sem fogo de artifício, ir preenchendo os instantes com movimentos milimétricos na sua simplicidade e no seu alcance, mudanças de cor só visíveis para olhos muito atentos e perspicazes, tudo devidamente enquadrado por um lugar fixo que espera sem enfado o nosso regresso e onde se coordenam uma pequena dose de conforto e de segurança, lugar de retorno, coito dos jogos opacos que a interacção social exige. É isso que temo, Doutor, a perda, voltar ao fantasma de não ter um recurso prático a que chamar sítio do meu sonho, e não sei, Doutor, não sei se isto que sinto é um sentimento meu ou o desgosto de ele poder já não ser o que eu sinto, desilusão portanto, falha, outra vez, da perspectiva e desta dificuldade insane em perceber a dinâmica do tempo, dos afectos e dos desejos.
(continua)

Torcato Matos

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