Capítulo I (retoma)
Quando conheci o Peter senti que era agora, que esta era a oportunidade, finalmente, de alguém que não era como se esperava que fosse, e que tinha, parecia-me a mim, um coração, assim uma coisa amável, que sentia em conformidade mas não estava preso a nada nem sentia com as situações do dia a dia relação ou remorso; vogava pela vida como se já soubesse da sua inutilidade e não parecia incomodado, e eu achei que esse poderia ser o formato adequado para encaixar as minhas sucessivas desilusões; parecia, e era, uma indolência benigna, uma condescendência com a evidente materialidade da vida; subia as escadas da casa que eu queria nossa e dizia ao chegar, com arrepiante sinceridade que já não tinha medo de se afogar no ar embaciado que respirávamos os dois ao mesmo tempo, dentro da mesma casa, e que o meu cheiro, que a princípio lhe tinha provocado algum temor, era agora uma coisa familiar que até podia ser benigno quando ele não sentia, pelo cheiro sim!, que me dominava a angústia e as moléculas da minha pele se escapavam pela pressão interna do desespero. Senti, com ele, outra vez, que era desta vez, que o quadro se compunha, que tinha aqui ao pé a dureza arrepiante do imponderável revestida de uma forma que sendo reconhecível não era da mesma espécie que várias vezes me quisera tornar pedaço humano morto e enterrado; acreditei, acredito, que qualquer expressão particular havia que me não enganava nesta ocorrência singular de homem que primava por não saber a que me referia quando não me referia a outra coisa que não ele próprio e assumia que entre nós, entre o corpo dele e o meu corpo, havia, de facto, uma união que não era tradutível em sinais universais e buscava nessa particularidade de único a suficiente harmonia de ser ao contrário do que até então eu conhecera que parecia sempre feito da matéria oscilante de um espelho que tenta reflectir em cada gesto um outro gesto já usado e aprovado pelas normas e pelas associações que impunemente governam e arregimentam o mundo. Só depois eu quis saber quem era o Peter, buscar pelo seu corpo marcas de identidade, encontrar nas suas palavras e nos seu tiques impressões digitais de um eu que escapava sucessivamente à lógica, à certeza, à prudência, à consciência, à posse...
(continua)
Torcato Matos
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