terça-feira, julho 18, 2006

A dificuldade de ler (21)

O Doutor deve saber que não há muitos destinos possíveis para um mulher quando emerge nos vastos e maioritários espaços em que ainda se não deu forma a alguma desarrumação na geometria elementar das consciências, e quando digo que não há muitos destinos não consigo evitar pensar em apenas dois, na restrição binária do maniqueísmo nivelado pela morbidez mental de costumes - substâncias nauseantes a que se convencionou agregar sentido para justificar como justo tudo o que empalidece e esvai em nada o paradoxo da inteligência - que deixa como caminhos exclusivos e de sentido único, a perda sumária da dignidade no banquete dos prazeres ou a dor silogística da maternidade, Madalena ou Maria para sempre, rostos contraditórios nos extremos da fuga ao máximo terror de perceber e aceitar a diversidade do ser e do gesto, temor, sempre temor, terror, medo absoluto a vencer outro medo absoluto, luta constante com o aproximar da estranheza, culto dogmático da ignorância e da imposição, e medo, e medo, e humilhação, tudo por um pedaço de tempo próprio para sentir, sem nunca chegar a saber como; vida binária, ser e ter sem ser nem ter, e deixar o gosto inebriante da simetria, como na benevolência da rima e do gesto harmonioso, determinar a verdade, o belo, o bom, o sentido e a divindade. Foi por isso que fugi, que saí de lá, de ao pé dos lugares em que me sentia primitiva, desses lugares em que se acredita que a verdade é uma coisa que foi determinada num passado muito distante e onde agora nada mais nos resta que esperar que esse luxo abandonado regresse, sempre com este sentido de termos sido abandonados, deixados à nossa sorte por não termos sabido aproveitar o que valia a pena e termos optado não sei bem porque maus caminhos, mas certamente os mesmos limitados maus caminhos que uma humanidade fêmea pode tomar na sua essência de criatura a quem mais não resta do que perder-se ou cuidar devotamente da sua geração, dando-lhe por um lado razões externas para viver e alimentando por outro a sua amargura do resto que sobrou de uma intenção melhor que nunca se pode concretizar, ilibada mesmo assim de culpas se souber apreciar na dor o êxtase merecido e na dádiva da vida a vida como dádiva. Foi por isso que fugi, mesmo não sabendo que era por isso que fugia.
(continua)

Torcato Matos

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