sábado, julho 15, 2006

A dificuldade de ler (18)

- Este sabor, Doutor, faz-me regressar à menina de há muitos anos, ao amargor de saber que o que está para acontecer é sempre pior que o que já aconteceu e o som da broca, o agudo que entra pelos ouvidos, arrepio de vida a fugir por entre os dedos, dor insuportável antes do contacto, silvo de bala prolongado no tempo, à espera de um corpo que há-de encontrar mais tarde ou mais cedo, morto ou vivo, indiferente ao que não seja o próprio sofrimento e indiferente também à astúcia do tempo a recriminar os afectos e a perder as esperanças, abandonada já a infância, com uma certa pressa, não fosse o azar das questões internas provocar derrames alargados de lágrimas e de pensamentos na modesta casa em que as coisas só aconteciam motivadas por alguma pressão do exterior ou das bocas que se ouviam à passagem, ou que nem se ouviam mas ficavam nos ouvidos como se fossem ditas porque, para todos os efeitos, sentíamos que eram merecidas ou mesmo desejadas, que as questões que se punham a quem nem sequer tinha tido tempo para aprender a sonhar, quanto mais a soletrar as letras difíceis do alfabeto de uma virtude qualquer e em que, a cada momento que passava, parecia que o anterior tinha sido mais um degrau descido em direcção a um inferno ainda mais desumano, eram vagas emanações de uma retórica impiedosa, morta à nascença e deixada abandonada no caminho para que todos vissem a miséria como forma legal de dar à ilusão um espaço sensível e tributável, porque o problema maior era já termos visto o outro lado, sabermos, na nossa ignorância, que havia um lado de lá, rigoroso de promessas e ares misteriosamente limpos e de aparência salubre - atraentes esses lugares - mais não fosse porque eram outros lugares que não os do hábito da censura e da negação e de parecer, porque parecia, Doutor, que além do nosso casulo com cheiro a estrume, cercado de odores que carregavam a morte, havia lugares em que o nariz não se fechava na defensiva e aspirava como se se pudesse respirar realmente e sempre.
(continua)

Torcato Matos

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