Capítulo I (retoma 2)
Não sei dizer de que ajuda preciso. Sei apenas, Doutor, que me sinto incapaz de recomeços e me assusta a ideia de perder outra vez o rumo, de voltar a sentir além da lágrima dolorosa da perda, o vazio intransponível de outro início, de voltar a soletrar outros nomes até que um me pareça aquele que acompanha a vibração do meu. Assusta-me, Doutor, ter de perder outra vez muitas vezes até haver uma vez milagrosa em que voltarei a ganhar. Houve um tempo, Doutor, em que acreditei que éramos mais do que o corpo que nos vestia, que havia fluidos extraordinários que ensopavam de alma a nossa carne; acreditei que tinha que haver mais qualquer coisa do que o acaso que particularmente nos tocava e acreditei também que de ser para ser se poderiam estabelecer pontes que transcendessem as propriedades físicas da matéria. Agora sei - dirá que acredito, o que é o mesmo - de sermos apenas estas células em efémera cooperação, que fazem uma unidade estranha e às vezes quase equilibrada. Sei que é este corpo que tenho que me determina e traz com ele memórias que me fazem eu, e me dizem o que sou, história de mim própria, caminho construído na sucessão de contingências determinadas, acasos obrigatórios e erros criativos. Sei, sabendo que o que sei é acessório, que o meu corpo só amará outro corpo pelo corpo que o outro é e que todos os sinais de afecto nascem apenas dessa ramificação que se cria entre os toques em que a matéria se troca, o bafo, a saliva, a palavra, o sémen, o suor, o cheiro, o som, o grito, a luz, a forma, o peso, a electricidade, o magnetismo, as unhas, o cabelo, as lágrimas... O sólido, o líquido e o gasoso em vez da água, do ar, da terra e do fogo. Sei, Doutor, só agora, que é sobre isto que as palavras se constroem, e é sobre as palavras que se constroem os mitos, e é sobre os mitos que se constroem as ilusões, e é sobre as ilusões que se constrói o medo, e é sobre o medo que se constrói o poder, e é sobre o poder que se destrói o corpo, e se culpa o corpo, e se elimina o corpo, e se dá origem por decreto ao fluido inefável da alma. O que me vai doer, se o Peter se perder de mim, é o corpo, Doutor. Só o corpo. Ainda que eu precise de usar as palavras para falar dessa dor e as palavras digam coisas que parecem só ter sentido se o corpo não estiver presente. Será sempre um corpo que perde outro e fica, por isso, só, equidistante de todos os outros, sem aquele que lhe serve de ponte para a existência. No corpo que já não está serei viúva, ausência do próprio corpo que não é enquanto não tem alternativa que o faça ser mais do que um espectro.
(continua)
Torcato Matos
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