sexta-feira, julho 28, 2006

A dificuldade de ler (30)

Capítulo II (versão zero ponto sete)

Há uma mulher que se cruza com Peter quando este está sentado sobre uma pulseira de diamantes à espera que a noite caia. É uma mulher jovem - naquele sentido em que uma mulher é jovem desde que mantenha à sua volta um aroma peculiar - loura natural com o cabelo rudemente pintado de negro baço, um olhar confiante e decidido, roupa cuidadosamente desleixada, moderna, de andar largo marcando o ritmo do salto, agitando as formas soltas e propondo ao olhar de quem passa desejo, cumplicidade ou inveja. Vive na parte norte de Londres, num apartamento de duas assoalhadas, uma delas com vista para um jardim público de dimensões assinaláveis, a maior parte das vezes ocultas ao olhar por um nevoeiro militante, e mais não deve ser dito porque se trata de uma personagem com uma missão secreta, quer neste caso quer em muitas outras histórias em que tem participado, bastas vezes sem o devido reconhecimento.
É sempre complicado para quem narra, encontrar a equidistância necessária entre o facto, a narrativa e a verdade. Não seria justo que esta mulher - Natasha Kent de nome - tivesse a sua intimidade devassada pela rotina de uma história, podendo pôr em risco a sua segurança, o seu amor-próprio e, não menos importante, a sua qualidade de vida, apenas pela futilidade de dar a conhecer ao leitor pormenores episódicos de uma vida absolutamente igual às outras se retirarmos as questões mais ligadas à acção e ao modo de ganhar o pão de cada dia. Dá-se então a conhecer o que é relevante e omite-se o que é banal. Delimita-se a zona da verdade de maneira a respeitá-la como um absoluto e uma meta. Salvaguarda-se o particular para garantir o universal.
A mudança caracteriza-se, em Natasha Kent, pela procura sistemática, portanto disciplinada, do intervalo mínimo de tempo necessário para que um determinado objecto, em dada altura muito familiar, se torne um objecto suficientemente estranho para poder ser querido de novo. Natasha Kent é, portanto, uma agente da mudança. Tem cartão de identificação válido até 28 de Outubro de 2017, embora tenha que adquirir semestralmente uma vinheta de garantia anti-furto. O cartão dá também direito a descontos nos armazéns Aroldos às terças e sextas e refere ser Natasha Kent do sexo feminino, olhos verdes, cabelo louro, 69 polegadas, 154 libras, nascida na Rodésia a 28 de Outubro de 1967. É uma agente secreta na medida em que ninguém sabe que ela é agente secreta. Sabemos que é uma agente da mudança mas apenas podemos suspeitar que é uma agente secreta da mudança. O seu trabalho é claro. Move-se rapidamente pela cidade de Londres - por vezes noutras cidades - em busca de objectos que se enquadrem no perfil predeterminado pelos seus superiores hierárquicos.
(continua)

Torcato Matos

Sem comentários: