sábado, julho 22, 2006

A dificuldade de ler (25)

Teria eu certamente de amar a loucura como toda a gente, mas eu não quis, eu sabia que isso era possível mas não procurei essa parte deslocada da vida. Não me interessa o lado não lúcido; arrepia-me estar, ainda que por instantes, na presença de factos que não são factos, pensamentos que não são pensamentos, virtudes que não são virtudes, ilusões, mentiras, truques, falhas de perspectiva; não me interessa o que não é, quero apenas que ele seja então esse ser que eu construí com os dados mínimos das primeiras pinceladas e ver aí a absoluta indiferença pelo sentido geral, pela cultura geral, pela ideia geral, pela maneira geral, pelo estado geral, pela média presumida de lei que dita cada valor e cada ansiedade e ainda que nós não queiramos enfileirar pela mesma medida de generalidade; fica quase sempre a ideia desalinhada e louca de ao não pertencer ao grupo, pertencer pelo menos ao grupo dos que não pertencem ao grupo, encarrilar com qualquer coisa, mesmo que estranha, mas nunca ficar à chuva, não recusar o chapéu que há sempre para encobrir um qualquer desencaminhado que se estranhe no lugar a que não sabe pertencer; nada de ficar de fora da taxonomia, nada de ousar misturar o trigo com o joio, nada de afectar os indicadores de confiança que são muito sensíveis à diferença, porque pode perturbar a indiferença militante e de um momento para o outro o rebanho tresmalha e os rendimentos de quem rende tornar-se subitamente menos rentáveis. Eu encontrei o Peter como se fosse o milagre impossível. É certo que isso já me acontecera antes. Mas ganhei experiência, aprendi a olhar melhor para a textura do primeiro impacto e a recusar o que se parecia às anteriores desilusões. Aprendemos ao mesmo tempo que esquecemos. Esquecemos os factos mas ficam as impressões, os métodos, as intuições, os impulsos de defesa. Peter é diferente demais, é a pedra que escapou ilesa ao rolar furioso do rio e chegou a mim ainda sem as marcas do tempo, sem as pressões das tempestades, sem a avidez incontrolada da fome. O Peter nunca me fez sentir como uma coisa que pode ter um dono.
(continua)

Torcato Matos


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