quarta-feira, julho 19, 2006

A dificuldade de ler (22)

Fugi, Doutor e fugi várias vezes. É próprio dos animais fugirem dos ambientes hostis, procurarem lugares que os aceitem ou, pelo menos durante algum tempo, lhes pareçam amigáveis, tolerantes, no mínimo lugares que os ignorem e os deixem em paz. E foi isso que eu fiz. Foi assim que andei de poiso em poiso, não propriamente à procura - o que é sempre uma maneira bonita de ilustrar o nómada - mas empurrada pela substância do acaso, ávida de corroer em cada humilde pausa, a textura delicadamente construída no interior de cada universo diferente que fui encontrando, e acreditando, e sonhando, e construindo, e perdendo... Mesmo no contínuo estado de perda acabei, sempre, por ser mãe, Doutor. Mulher com a matriz da maternidade, como se um poder superior determinasse ter que ser mesmo assim, com ou contra, em estádio de ser ou de parecer, em forma ou em conteúdo, em vontade ou em mera contradição de termos e de lamentações; sempre adiando o dia em que havia de ser por outra causa qualquer que não a de salvar, de trazer a vida na palma da mão, como uma planta que se cuida para ser outra vez razão nenhuma, outro arbusto a suportar os custos da sombra e a sentir ai, no desgosto de não ser e ao mesmo tempo não saber o que é ser, reservada a intenção para mais tarde, para quando fosse possível, para quando Deus quisesse, para depois de salvar tudo e todos, na impossibilidade flagrante de não continuar a dar apenas lágrimas como contributo à felicidade imaginada para todos.

Mas não é bem assim, Doutor. Estava a deixar-me ir pelas palavras. Por instantes pode ter parecido que estas fugas estiveram isentas de ódio e isso não é sequer pensável porque o que me moveu, juntamente com o medo e ao mesmo tempo que o medo, foi o ódio, puro e duro, firme de morte, revolta total contra a presença e contra a ausência, clima tonitruante de ira extrema e sangue enxameado de destruição, de veneno, de asco... Sabe como as emoções vão e vêm, sabe, somos todos assim, pesa-nos às vezes a alma com a importância que de repente um nada ganha e nos faz perder o sentido do real, e ficar o mundo inteiro pendurado pelo fio flácido de uma aranha mesmo à mão da nossa mão de justiça...
(continua)

Torcato Matos

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