quinta-feira, julho 27, 2006

A dificuldade de ler (29)

Sabe-me bem estar aqui a falar consigo Doutor. Embora eu saiba que já não me ouve. Sinto a sua respiração pesada de quem dorme com a consciência leve. Ainda é melhor assim: falo consigo, desabafo, e continua a não saber nada de mim, a ser um estranho, como convém. Desta forma não tem que fingir que não sabe. É a melhor estratégia: não saber, ignorar, estar a leste, ficar de fora, não ver, não ouvir, não ter que testemunhar nem fazer perante os outros uma figura qualquer de aparência. Depois de experimentarmos, depois de sabermos, depois de tomarmos posse de um elemento qualquer de informação, já não somos os mesmos. Ficamos sem condições de ser. Mais tarde ou mais cedo revela-se a nossa experiência, essa primeira vez que sendo a primeira pode ser a única mas se chama já e para sempre experiência. É ainda o corpo que nos trai. O corpo é terrivelmente honesto, dorme quando tem sono, grita de dor, quebra com a fome e seca com a sede, desarticula-se sem sensualidade, cai morto quando morre e esquece. Não há nada a fazer para o fazer passar por ignorante quando sabe. A mim parece-me, Doutor, que aquilo que sabemos, tudo o que sabemos, fica mergulhado nas células, passa a ser carne, e por isso não somos capazes de mentir com o corpo. Os meus dentes que agora tenho que proteger para me acompanharem enquanto aqui estou e vou comendo para me manter viva, serão a última coisa a desaparecer depois de morta. Se não me queimarem para que a minha matéria entre logo a seguir no jogo encantado da reciclagem biológica. Acredito na reencarnação, claro que acredito na reencarnação. A matéria de que sou feita já foi outros corpos - muitos, espero eu - desde que há vida. Há um pedaço de couve que comi hoje que ontem era couve e amanhã sou eu. É engraçado ver a vida assim: somos reciclagem pura. Nada do que nos faz veio de propósito para nós. No meu cabelo pode haver metais que já fizeram o cabelo de Parménides, de Átila, de Dante. Bah, eu só sou enquanto sou, enquanto estou aqui a falar consigo, mesmo que o Doutor seja o que é enquanto é e não me esteja a ouvir. Não há outro caminho e este tem pano para mangas. Fez-me bem falar consigo, Doutor, não é o mesmo que falar com uma parede; há um lado humano em si, mesmo que não me ouça, ou mesmo que já nem esteja nesta sala. Não tenho a certeza de o ouvir respirar. Pode muito bem ter-se ido embora, farto da minha conversa e dos meus problemas. Mas estou aqui bem e nem me apetece voltar a cabeça para tirar esta dúvida. Jogo nas probabilidades, no efeito devastador das palavras e na vontade de rir que agora chegou para me tirar este peso. O Peter não é meu filho, não o produzi, não o determinei. Não tenho como explicar esta preocupação. E não explico, não sei, não digo, não penso. Este lugar é bom, sinto-me bem aqui.
(continua)

Torcato Matos

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