Nos desatinos de uma ocasião ficou o meu corpo preso à demência de gerar outro e só a sorte anónima de um habitat que fazia por se proteger do que era demais, segundo uma lei fatal que vinha de profundidades irracionais, ficou-se a meio do seu potencial num passe de dolorosa magia em que um gesto brusco e quase cirúrgico recolocou a vida na sua ensanguenta normalidade e me retirou a mim uma impureza que não podia ser por não estar prevista na lei a impunidade para os actos que não se deixam medir pela fraqueza ou pela força dos que podem e determinam. Fiquei também, e ao mesmo tempo, dispensada para sempre dos pesadelos do pecado como se o acto de morte tivesse sido ao mesmo tempo uma confirmação do meu baptismo de vida e uma carta de alforria para o prazer e para a isenção formal dos seus meritórios impostos. Mas eu era ainda demasiado jovem e já demasiado ressentida e tudo o que poderia vir a seguir estava contaminado de excesso e de negação e todo o passo que eu desse pelos caminhos que já estavam escrutinados de desrespeito por quem tinha ido além do que a moral pedia, como se cada acto feito à revelia da consciência fosse um teste mais à viabilidade orgânica de um ser que tinha que escolher na idade tenra o lugar social a que iria pertencer, colocando com a devida precisão a hierarquia elementar dos desejos e a formulação exacta das possibilidades - escolha portanto que não era escolha mas teste absoluto a uma natureza que era viável ou não, como aconteceu logo a seguir quando na fábrica aprendi a rejeitar, sem apelo nem agravo, o que não fosse de acordo com a norma e a aproveitar apenas o que encaixava no 'check list' rotineiro, deixando de lado, qual ditador desumano, o objecto em que um lapso milimétrico no erro de fabrico, tinha ensaiado uma condenável imperfeição - dizia eu, todo passo que eu desse, fosse por onde fosse, seria um falso alarme de outro passo que nunca seria capaz de dar.
(continua)
Torcato Matos
Sem comentários:
Enviar um comentário