domingo, julho 16, 2006

A dificuldade de ler (19)

Tudo nesse passado se perdeu através de frinchas de portas que escutavam assobios repentinos de medo e da assombração pormenorizada que cada gesto de um pai que era ali rei para compensar as humilhações de um dia a dia desesperado e tinha para com o mundo que nos cercava e afogava, frases absolutas e inquestionáveis, leis divinas a somar às leis divinas que a mãe divulgava em provérbios assentes na verdade irrefutável da rima pobre que talvez se chame assim por ser rima de pobre ou se tenha tornado pobre por ser a rima das verdades que só interessam a quem deve permanecer pobre para todo o sempre a fim de que recicle habilmente os restos que vão caindo da soberba mesa de quem pode e eu não sabia que todo o destino está na infância e nada mais se pode acrescentar a esse pedaço de tempo em que as palavras ainda não se dividiram em múltiplos significados e que, mesmo o que sabemos é, antes de mais, o mais ineficaz dos conhecimentos a levar o sentido da existência para labirintos em que já se sabe que o caminho não tem saída mas mesmo assim se tenta na esperança de um milagre que também sabemos não existir, sendo um saber a que não damos importância porque temos de dar mais importância ao silvo embriagado da água que finalmente aqueceu e traz a potência de por momentos reduzir o desconforto de dias e dias em que não era possível senão encostar corpo contra corpo para sentir que o mundo não acabava ali naquele gelo que comprimia a difícil respiração e expulsava vapores nauseantes pela boca que no meio da tosse e dos fumos fabris ainda tinha um espaço mínimo por onde manter o sangue a correr, e o coração, coisa de textura mole e inadaptada, ousava admitir que havia um futuro reservado noutro corpo, sem saber como nem porquê, atento apenas aos esgares fortuitos das secreções e à movimentação estratégica das hormonas, inquietas de se fazerem sentir na formalidade doentia de quereres que não eram vontades mas pareciam, e que levavam a água ao seu moinho, isentas de responsabilidade e de medo de consequências, anestesiados os dons da moral e dos provérbios pobres de rima e requerida da altura de um abismo a urgência inestimável que dava para retirar do mundo o estado supremo da fascinação do instante e o arremedo instantaneamente gasto do prazer.
(continua)

Torcato Matos

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