quarta-feira, julho 05, 2006

A dificuldade de ler (10- P/P10)

Pode ter sido por associação de ideias que, de repente, a ponte acabou, abruptamente, como se um arquitecto louco - outra vez - tivesse concebido uma ponte louca para homens sãos usarem para mudarem de estado físico e psíquico.

Ele saltou os vários metros que separavam a plataforma elevada do passeio-margem que seguia entre as árvores, à beira da preguiça ensopada do rio, e caiu de pé sem ter rodado sobre si com um mortal à retaguarda. Falta sempre algum dote artístico aos heróis, que perdem por isso o respeito dos belos e ficam entregues à lágrima fácil das sopeiras.

Aos pés dele, sobre a dureza castanha da terra repisada, estava em reluzente abandono um pulseira de diamantes. Olhou à volta. Várias pessoas olhavam disfarçadamente, na expectativa de que ele percebesse que eles tinham visto mas ninguém mais percebesse o que cada um tinha visto. Porque o brilho era muito e atraía a atenção do mais desprevenido. Uma jovem loura que tinha os cabelos pintados de preto, seguiu o seu caminho na direcção dele, querendo parecer natural que não se desviasse nem um milímetro do seu caminho em linha recta, porque se se desviasse isso quereria dizer que tinha visto o mesmo que os outros, apesar de ela não saber que os outros também tinham visto e desejar que os outros não soubessem que tinha visto o brilho que viu.

Ele sentou-se no chão, as pernas pernas cruzadas e o olhar meditativo, sobre o incómodo da pulseira que tinha as pedras mais duras da terra. Sentado, nervoso, impaciente, dramático, tirou os óculos escuros e percebeu que afinal era dia. Alguns factos e algumas ideias poderiam ter feito sentido naquele instantes se o sentido fosse o que ele procurava.
(continua)

Torcato Matos

2 comentários:

Fausta Paixão disse...

Olha, lá!, o homem morre ou o filme acaba bem?

Anónimo disse...

Qualquer homem, mais tarde ou mais cedo, acaba por morrer. E este não deverá ser excepção. Mas não sei. A reportagem é um modelo de escrita que não depende do narrador. Mas as histórias acabam sempre bem. Pelo menos para um ou outro ponto de vista. Às vezes o simples facto de acabarem já é uma benesse.