terça-feira, julho 04, 2006

Esfera

É verdade que no cimo da montanha há uma miragem.
De lá, do cansaço da subida e do ar rarefeito, vê-se o universo como se fosse logo ali.
De lá, da pele áspera do frio e da secura, ouve-se a terra com se fosse paz.
De lá, da febre e do prazer da conquista, sente-se o corpo como se voasse.

Há na repetição dos gestos, louváveis secreções de sonhos.
Movimento balanceado do ritmo de ir sabendo do regresso e de voltar para não permanecer.
Sobem as certezas na flecha do tempo e da ambição.
Crescem como vulcões os sentidos da posse, da vontade, da insistência...

Todos os dias o mar entra alegre pela nesga apertada da rocha.
Baba-se de prazer com a espuma de estar a cumprir uma missão.
O mar sabe.
O mar sabe há muito tempo qual é a sua ordem e o seu destino.
Faz o que tem a fazer e não pede desculpa a ninguém.
Segue a sua vocação de saber ir e saber voltar.
Segue a sua intenção de ser livre porque imprevisível e insensato.

Quando, no cimo da montanha, as estrelas ficam ali próximas, à mão de semear, dispostas em formas clássicas e dispostas a serenar o espírito, penso que sou o mar, a desfrutar da praia onde entrei à força do músculo das marés.

Quando, lá no alto, o som ausente estremece nos meus pulmões limpos da cegueira e da fome, e o ténue risco que separa as nações se mostra imponderável, vejo-me a inundar os corais e a animar as cores infundadas das anémonas.

Quando, no topo, na sólida rigidez das pernas, gastas de ingratas caminhadas e quedas e regressos e medos e sonhos e impossibilidades, desejo-me sentido e calmo, sorvendo a lentidão solene de um balouçar prudente, encantador de sereias, de tempo e de servidão.

Todos os dias o sentido iluminado volta.
Pelas ruas crescem, à porta das casas, as ilusões.
Não é necessário esperar mais tempo para perceber que será sempre assim.

Mas não importa.
À porta de cada casa há uma razão própria e única para colher as flores.
Cada degrau passa por cima de toda a Terra.
Por muito alto que suba é sempre a mesma a distância ao centro.

Sísifo

1 comentário:

Elipse disse...

Não gosto do Sísifo, como sabes. É uma personagem que me aflige pelas características de "sem terra", "sem abrigo" e "sem futuro", tendo como princípio que o futuro é a mudança (desejável).

Tenho de reconhecer que a escrita do Sísifo é, no entanto, de grande beleza formal. Este texto talvez esteja ainda melhor que alguns dos outros, pois se se repete no conteúdo foge, desta vez, às evidências...